Edição 49 - Outubro/2024 | Entrevista
Amazônias de fora e de dentro
Nesta entrevista, o professor, pesquisador e escritor, Fadul Moura, parte de sua trajetória acadêmica para refletir sobre o pensar a Amozônia pela literatura que, em suas palavras, "é pensar em ideias que circulam dentro dela, sejam aquelas voltadas para a sua geografia, que, de fato, existem, sejam outras, que falam de fluxos ideológicos ou teóricos que adentram aquele espaço e dão forma a ele.” Moura é nascido em Manaus, cursou Letras – Língua e Literatura Portuguesa na Universidade Federal do Amazonas (2008 e 2011), com mestrado em Letras e Artes na Universidade do Estado do Amazonas e doutorado em Teoria e História Literária na Universidade Estadual de Campinas. Foi durante este longo percurso, que surgiram os questionamentos sobre os lugares de onde a Amazônia era observada. É o que ele veio nos contar.
Boa leitura!
LBXXI: Fale-nos um pouco da sua trajetória acadêmica. Por
que pensar a Literatura na Amazônia?
Fadul Moura: Primeiramente, agradeço a
oportunidade de falar sobre um tema que para mim foi caro durante parte de
minha trajetória. Nasci em Manaus e cursei Letras – Língua e Literatura
Portuguesa na Universidade Federal do Amazonas entre 2008 e 2011. Naquela
altura, tive contato com professores interessados em pesquisas sobre contistas
relacionados (em sua maioria) ao Clube da Madrugada, movimento cultural
responsável pela renovação estética e política no estado. Apesar de parecer uma
ligação um tanto óbvia – isto é, estar em um lugar significaria que você
estudaria sobre ele –, a coisa não era bem assim. Os currículos previam apenas
uma disciplina sobre a produção literária de autores amazonenses, de modo que
muitos nomes eram deixados de lado em prol de uma ideia de literatura nacional
e canônica. Na contramão disso, o interesse da profª drª Nicia Petreceli Zucolo
por livros de contos publicados a partir dos anos 1960 no Amazonas me
proporcionou o conhecimento de Benjamin Sanches (sobre quem escrevi), Erasmo
Linhares, Carlos Gomes, Milton Hatoum (o mais famoso entre eles) e Astrid
Cabral (meu futuro objeto de pesquisa em função de sua produção poética). Ainda
na graduação cumpri um projeto de Iniciação Científica sobre a presença da
Amazônia na lírica de Mário de Andrade. Por causa dele, conheci tanto o famoso Turista
aprendiz, livro oriundo da viagem que o poeta modernista realizou em 1927 para
o Norte do país, quanto os livros Clã do jabuti (1927) e Remate de males (1930),
com poemas em que a cultura amazônica ganha relevo. Apesar do esforço de
valorização evidente no poeta paulista, ainda me soava um tanto estranho o
motivo de as representações da Amazônia estarem sempre voltadas para alguma
história indígena e, principalmente, para a dimensão grandiosa da floresta. Quando
comparei os contistas e o poeta, percebi que a diferença ultrapassava a mera
questão do gênero (prosa vs poesia). A abordagem adotada em cada pesquisa
também me ajudava a perceber diferenças: a primeira estava mais inclinada a
estudos que relacionavam Literatura e Filosofia; a segunda, voltada para a
Sociologia da Literatura, em uma vertente mais tradicional. Pude, então, intuir
que uma explicação para aquilo residia na perspectiva que cada autor tinha
sobre a região. Foi aí que comecei a me questionar sobre os lugares de onde a
Amazônia era observada.
Anos depois, cursei mestrado em Letras e Artes na
Universidade do Estado do Amazonas. Tratava-se de um curso novo, único no país
a congregar as duas áreas e a oferecer tanto disciplinas de Estudos Literários
quanto de História da Arte e Musicologia. Minha proposta era sair do exotismo
atribuído à literatura do Amazonas, muito colada na ideia de Amazônia. Para
tanto, propus uma comparação entre Manaus e Lisboa, aproximadas por um tema
comum tanto na poesia de Luiz Bacellar, amazonense, e de Al Berto, coimbrão. O
tema era a cidade, dominada pelo sentimento da nostalgia. O projeto sofreu uma
modificação por sugestão da banca de seleção, de modo que eu fiquei apenas com
Luiz Bacellar. Desse modo, minha pesquisa passava a integrar um projeto maior
de meu orientador, o Prof. Dr. Allison Leão. A partir dali, eu estudaria a coleção
e sua relação com a memória em Frauta de barro (1963), primeiro livro do autor.
Com efeito, estava muito longe da ideia florestal e aquática do imaginário
comum.
Por fim, ainda cursei doutorado em Teoria e História
Literária na Universidade Estadual de Campinas (com bolsa de estudos concedida
pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Eu continuava com
Luiz Bacellar e adicionava em meu horizonte a poesia de Astrid Cabral. Meu
orientador, o Prof. Dr. Franciso Foot Hardman, já era uma grande referência nos
estudos sobre as representações literárias da Amazônia e tinha conhecimento de
que elas não se limitavam ao rio e à floresta. Graças a ele, que sempre teve
uma postura mais acolhedora para com autores de fora do cânone, pude
desenvolver um projeto que retomava algumas questões de meu mestrado e se
inclinava para o tema da viagem, recriado por ambos os poetas. A parti disso, tudo
mudaria, pois minha pesquisa traria à tona poetas que percorriam espaços de
dentro e de fora da Amazônia, oferendo uma perspectiva inversa daquela
comumente difundida. Não eram mais estrangeiros que viajam até lá e escreviam
sobre ela, mas autores locais que assumiam o ponto de vista da
autorrepresentação ou viajavam para fora do país para escrever sobre o Líbano,
a Grécia e os Estados Unidos (caso particular de Astrid Cabral).
Feito esse pequeno trajeto, poderia, então, responder à
sua pergunta. Pensar a literatura na Amazônia equivaleria a observar a
colaboração que poetas e prosadores oferecem ao estarem atentos a processos
sociais e históricos que, uma vez cifrados literariamente, falam a respeito de
uma parte do Brasil e de fora dele. Valeria lembrar que literatura na Amazônia
não é necessariamente a literatura no Brasil. Ainda temos nesse espectro a
literatura hispano-americana, que nos garante um número maior de vozes. Elas
ajudam a reconhecer que nunca houve temporalidade única nesses países. Não só
pela nossa dimensão geográfica, mas também pela nossa configuração
multicultural, temos um país com regiões mais heterogêneos que uniformes. No
caso brasileiro, a utopia da temporalidade única serve para que estejamos
atrelados ao tempo da acumulação do capital. Observar uma produção literária
que oferece uma alternativa a isso deságua no desejo de pensar também outras
formas de vida em sociedade.
Pensar a literatura na Amazônia não significa
necessariamente que os autores tenham nascido nela. O caso do português
Ferreira de Castro, que escreveu o romance A selva (1930), é emblemático.
Trata-se de um autor que descreve uma viagem pelo rio Amazonas e o contato com
a dinâmica de vida dos seringueiros. Outro exemplo é Raul Bopp, gaúcho que
morou em Belém e compôs Cobra Norato (1931). Ambos são pessoas que criaram
obras com base em suas viagens. Do mesmo modo, os autores nascidos na Amazônia
não são obrigados a escrever sobre ela. Astrid Cabral, por exemplo, elabora
histórias sobre personagens que são plantas em Alameda (1963). No entanto,
todas elas estão no espaço urbano. Julgar que aquele espaço é exclusivamente a
Amazônia em função do nascimento da autora fala mais sobre o imaginário que
edifica a suposição do que sobre o próprio livro.
Assim – retomo mais uma vez –, pensar a literatura na
Amazônia é pensar em ideias que circulam dentro dela, sejam aquelas voltadas
para a sua geografia, que, de fato, existem, sejam outras, que falam de fluxos
ideológicos ou teóricos que adentram aquele espaço e dão forma a ele.
LBXXI: Quando ouvimos ou pronunciamos a palavra “Amazônia”,
vem em mente diversos sentidos associados ao termo, que é conhecido no mundo
inteiro. Qual a necessidade de estarmos alertas a este espaço com múltiplas
camadas de significados, que revelam “outros lugares”, ressaltando que a
Amazônia, como a literatura, é complexa, e que não pode ser lida e entendida
sob um ângulo apenas, ou sob uma única perspectiva?
Fadul Moura: Para o senso comum, dentro e fora do
país, às vezes parece que até hoje só há populações indígenas na Amazônia e que
elas vivem sem qualquer ligação com o Brasil. Esse tipo de pensamento é
essencialista e atrelado à fantasia de uma cultura pura. O mesmo imaginário
que, inicialmente, é atribuído a grupos indígenas é espraiado para todo o
conjunto social que reside na Amazônia. Tal processo revela um desdobramento de
preconceitos que vê os grupos humanos do território como “primitivos”,
“atrasados”, “inferiores”. O perigo desse dinamismo é ele escamoteia o ponto de
referência de onde partem aquelas qualificações. Quando naturalizado, ele cristaliza
estereótipos. O grupo X seria “atrasado” em relação a quê? – eis a pergunta
necessária para que comecemos a perceber que todas essas camadas de sentido
foram inscritas em nossa cultura pela empresa colonial.
Uma consequência disso tudo é que sociedades diferentes
(originárias, urbanas e ribeirinhas, por exemplo) passam a ser tratadas como se
elas fossem um único bloco e rebaixado. Além de esquecer o fato de que grupos
indígenas já se lançaram ao domínio de tecnologias que não foram criadas nas
aldeias, afasta do Estado a responsabilidade que ele tem sobre aqueles que
vivem em seu território. Quando se exclui delas a possibilidade de acesso a
dispositivos legais como saúde pública, por exemplo, ignora-se um direito. Do
mesmo modo, as demandas específicas de uma escola de várzea, cujos alunos
precisam se deslocar através de transportes fluviais, não são as mesmas de uma
escola urbana. É preciso considerar que a dimensão grandiosa da Amazônia é mais
que uma natureza indômita, mas portadora de paisagens humanas. Essas têm suas
histórias, oriundas de contextos diferentes entre si.
Se a cultura amazônica passar a ser vista em sua
diversidade interna, a literatura derivada dela também o será. A título de
exemplificação, poderíamos recobrar que, em Visto da terra (1986), o sujeito
poético de Astrid Cabral vem nos dizer de uma Manaus formada tanto pela matriz
indígena quanto pela cultura importada reconhecida nos prédios e nos
monumentos. Do mesmo modo, em Relato de um certo oriente (1989), o narrador de
Milton Hatoum evidencia uma presença libanesa antes desconhecida na literatura
brasileira. Afastando-se das representações da tradicionais da natureza,
autores como esses usam gêneros literários distintos, mas não deixam de iluminar
traços sociais e culturais do interior da Amazônia.
LBXXI: Sobre a afirmação “as construções discursivas
não são isoladas, mas alicerçadas em concepções históricas”, no caso da Amazônia,
em sua maioria são oriundas de fora e não necessariamente de dentro. Poderia
nos explicar um pouco mais sobre isso?
Fadul Moura: A ideia de construção discursiva a
que eu me referi tanto na chamada da oficina quanto nos dias de aula com os
inscritos foi emprestada de Ana Pizarro, precisamente de um livro chamado Amazônia:
as vozes do rio – imaginário e modernização (2012). Para a autora chilena, é
preciso compreender uma dimensão mais ampla do sentido de cultura. Daí ela
dizer que “o discurso das encantarias, dos ‘encantados’, por exemplo, não é
estético no sentido ocidental clássico, mas tem evidentemente sua própria
estética que se expressa inclusive nas modulações da oralidade” (Pizarro, 2012,
p. 29-30). Excedendo os textos essencialmente literários e o domínio das Belas
Artes, ela vai em direção de relatos orais, documentos históricos, romances e
poemas. Do mesmo modo, meu objetivo durante a oficina foi demonstrar que cada
suporte escrito que tratava do tema “Amazônia” concebia uma visão assentada em
condições históricas específicas. Um viajante naturalista do século XVIII não
tem o mesmo interesse que um romancista do século XX. Enquanto o olhar do
primeiro recai sobre a taxonomia das plantas, o do segundo percebe a imigração
de japoneses para trabalhar com a juta. Antes de esses fatos culturais serem
depositados em livros, passam por uma espécie de filtro. Se aquele viajante vai
registrá-lo baseado em uma ideia de verdade científica, o romancista vai
transfigurar a realidade em uma cena literária; ela deixa de ser um retrato
fiel para, então, compor um quadro figurativo de uma história familiar.
Da mesma forma, uma ideia de primitivismo é depositada
sobre as formas de transmissão da memória de culturas originárias. Tal
concepção advém de uma época em que europeus viajaram pelo Rio Amazonas e
tentaram classificar os comportamentos dos indígenas. Por não os entender,
julgaram-nos “estranhos”. Muitas das acepções que essa palavra pôde assumir
produziram conceitos negativos. Não seria exagero lembrar que todo discurso é
ideológico, sendo emitido por um sujeito em condições particulares. Quando esse
corpo de sentidos chega a nós, utilizamo-nos deles sem necessariamente fazer um
rastreio dos respectivos significados. Sem esse conhecimento, que é histórico e
cultural, somos responsáveis por veicular noções agressivas e problemáticas.
Depreende-se desse caso a importância de investigar as condições de produção
dos escritores.
LBXXI: A oralidade é uma prática cultural e social
importante na cultura amazônica. Como o lugar de enunciação desse espaço está
associado à escrita nos dias de hoje?
Fadul Moura: A oralidade é uma prática
intersubjetiva; depende, portanto, do contato entre pessoas. É importante no
interior de uma comunidade para manter viva a memória do grupo. Quando esse
contexto é transportado para o âmbito da escrita, não se transforma em registro
documental. Isso contrariaria a própria intencionalidade do transmissor oral,
que, na origem, necessita da presença dos corpos para que haja o
compartilhamento das histórias.
O trabalho operado por poetas, por exemplo, agencia parte
de histórias contadas por anciãos e apenas fragmentos delas são reconhecidos
nos livros. No interior da produção indígena contemporânea, Márcia Kambeba fala
da natureza, das encantarias, de Tupã, de episódios da vida em comunidade. No
entanto, seus poemas não têm interesse em se transformar em compilação de
narrativas. O conhecimento de matriz oral é reconfigurado e colocado em função
do projeto da escritora, a fim de que alguns dos poemas ganhem apelo ambiental.
Diante de textos que mobilizam a tradição da oralidade, o
leitor está diante de uma escrita que se apresenta como um convite. Ele pode se
transportar para outro sistema de significação do mundo, baseado em narrativas
antigas. Ver o mundo por essa cosmovisão permite que vozes silenciadas no
passado participem do presente. Os animais falam, os espíritos enviam mensagens
aos vivos. Todo esse conhecimento é colocado em operação como uma alternativa à
lógica de pensamento capitalista.
LBXXI: No XXI, há uma infinidade de ferramentas, suportes
e tecnologias, como a internet e redes sociais, que permitem a preservação e
difusão de saberes culturais dos povos tradicionais. Qual é a sua opinião sobre
isso?
Fadul Moura: Bom, não creio que a antinomia
tecnologia vs conhecimento tradicional se sustente nos dias de hoje. Onde menos
imaginamos, ambos convivem. Tanto as redes sociais quanto os demais
instrumentos tecnológicos estão a serviço de quem souber usá-los. Essa premissa
também cabe aos povos tradicionais. Inclusive, alguns escolhem parte de seus
membros mais novos para que possam se aparelhar tecnologicamente e ajudar suas
comunidades. Esse movimento também aconteceu quando do ingresso de populações
indígenas na Educação Básica e no Ensino Superior brasileiro. Tais fenômenos
continuam sendo importantes como forma de estabelecer uma frente de resistência
em prol de suas memórias.
LBXXI: O que dizer sobre perspectivas renovadas de
autores contemporâneos sobre o que é a Amazônia que possibilitam uma
(re)imaginação do espaço?
Fadul Moura: Creio que o papel deles seja
fundamental para que haja a dessacralização de imagens estereotipadas. Mais
recentemente, o romance Um rio sem fim (1998), de Verenilde Pereira, traz os
rastros de memórias afro-indígenas, o que descaracteriza as ideias
cristalizadas que separam as duas matrizes culturais. A Amazônia seria um dos
lugares onde elas se misturariam. Canumã (2019), de Ytanajé Cardoso, conta a
história de uma família munduruku que migra para a cidade, observando a imersão
do protagonista no contexto da cultura branca. Ele se participa da formação
escolar e ingressa na universidade, tornando-se mestre em Antropologia. Por
serem obras bem recentes, esses dois casos poderiam ser exemplos dos novos
passos no conjunto das representações sobre a Amazônia.
LBXXI: Quais as principais leituras você indicaria como
oportunidades de aprofundamento de problemáticas que ajudem o público leitor a
compreender as formações históricas da Amazônia bem como sua multiplicidade
cultural e social?
Além dos autores literários que acabei comentando no
correr das perguntas anteriores, sugeriria, no âmbito da temática indígena, o
nome de Davi Kopenawa (A queda do céu, 2010). No que diz respeito ao processo
social formador da Amazônia, temos os estudos de Darcy Ribeiro (O povo
brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, 1995) e Bertha Becker (geógrafa e
professora da UFRJ que escreveu vários textos sobre a Amazônia). Nos estudos
literários, são interessantes os trabalhos de Willi Bolle (em particular, sobre
os viajantes alemães que visitaram o território), Francisco Foot Hardman (A
vingança da Hileia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a literatura moderna, 2009)
e Allison Leão (Amazonas: natureza e ficção, 2011). Os últimos são três autores
interessados em épocas de diferentes da produção literária acerca da Amazônia.
Na escala dos estudos latino-americanos, Leopoldo Bernucci é um autor
importante (Paraíso suspeito: a voragem amazônica, 2017). Além dele, temos Ana
Pizarro (Amazônia: as vozes do rio – imaginário e modernização, 2012), que
também comentei anteriormente. Por fim, no âmbito da História da Arte,
sugeriria o nome de Luciane Viana Barros Páscoa, com um trabalho primoroso
sobre vários artistas visuais do Norte do país (As artes plásticas no Amazonas:
o Clube da Madrugada, 2011).
LBXXI: Gostaria de acrescentar algo que julga necessário?
Fadul Moura: Apenas agradecer mais uma vez por
esta pequena conversa.