Edição 26 - Novembro/2022 | Entrevista

A representação negra no modernismo

Silvia Costanti

A representatividade negra abrange diferentes aspectos e pôde ser entendida dentro do viés do modernismo brasileiro durante a Oficina Imagens Negras no Modernismo, que aconteceu na Biblioteca de São Paulo, em setembro. A série de quatro encontros, realizada em comemoração aos 100 Anos da Semana de Arte Moderna de 22, abordou a presença (ou ausência), representação e representatividade negra no período de 1922 à década de 1930, considerado como a primeira fase do movimento modernista voltada para a busca de uma ideia de identidade nacional.

Conduzidos pela docente de graduação e pós-graduação do Departamento de Letras da UNIFESP, Ligia Fonseca Ferreira, os encontros trouxeram reflexões sobre o modo pelo qual a pintura e a literatura retrataram o negro no advento do modernismo, no início do século XX, com foco em duas figuras icônicas: Tarsila do Amaral e Mário de Andrade, artistas modernistas consagrados que faziam uma projeção da população negra em suas obras, protagonizando um movimento cultural que revolucionou a história da arte no país com enfoque em elementos brasileiros.

Segundo a professora da Unifesp, aproximar essas figuras justifica-se não só pela amizade afetuosa nascida poucos meses depois da Semana de Arte Moderna, mas sobretudo pelos vínculos e projetos estéticos que reuniu ao longo da vida dois artistas empenhados em “abrasileirar” as artes e a cultura brasileira.

Para se chegar aos questionamentos sobre o que estaria por traz da representação negra no Brasil no início do século XX, e fazer a transposição para outros campos que abrangem o discurso político e estudos literários, Lígia contextualizou historicamente a época apresentando um panorama sobre cidade de São Paulo ao longo da década  de 1920 - que passou a ser um importante polo cultural a partir da industrialização, fruto da consolidação de uma estrutura de complexo cafeeiro voltada para exportação mundial ao final do século XIX.

É neste cenário que se engendra o modernismo, um movimento artístico, cultural e literário que se caracterizou pela liberdade estética, o nacionalismo e a crítica social. Inspirado pelas inovações artísticas das vanguardas europeias (cubismo, futurismo, dadaísmo, expressionismo e surrealismo), teve como marco inicial a Semana de Arte Moderna, que se realizou entre os dias 11 e 18 de fevereiro de 1922, no Theatro Municipal de São Paulo.

A representação negra em Tarsila do Amaral
Um olhar atento sobre a tela A Negra, pintada por Tarsila em 1923, foi o ponto de partida para a reflexão sobre os aspectos relacionados à presença (ou ausência) da representatividade negra no modernismo.

“Quando ela (Tarsila) nasceu, em 1886, ainda não havia sido abolida a escravidão, então o convívio com pessoas negras era nesse contexto. Por mais que ela tivesse na fazenda, eram mundos separados. E essa é uma pergunta que faço, provocadora: será que ela tinha se interessado tanto por aquelas figuras que certamente estavam ali servindo, acalentando? É uma hipótese que estou fazendo, não estou afirmando”, diz a professora Lígia que, como pesquisadora documental, está habituada a olhar materiais específicos levando em conta o cenário de produção para uma interpretação mais profunda e reflexiva. Por isso, também, a importância de se fazer contraponto à leitura comentada de crônicas memorialistas da (também) escritora, faceta em geral pouco conhecida de Tarsila do Amaral, cuja produção jornalística estendeu-se de 1936 a 1952 e na qual relata seu convívio com representantes das vanguardas brancas e negras, reunidas em Paris onde viveu na década de 1920.

Mário de Andrade: “A felicidade é negra”
No campo literário, Mário de Andrade foi uma das figuras mais importantes do modernismo, sobretudo aquele ligado à realização da Semana de Arte Moderna. Para alimentar ainda mais as reflexões sobre o tema proposto pela oficina, o curso seguiu com exemplos da correspondência entre Mário Andrade e intelectuais brasileiros e estrangeiros - entre eles, Carlos Drummond de Andrade (1924), o antropólogo e médico alagoano Arthur Ramos, o sociólogo francês Roger Bastide e o musicólogo uruguaio Pereda Valdés.

Por meio da leitura comentada das cartas, foi possível que os participantes apreendessem as imagens de uma “felicidade negra”, ideia que marcou o poeta, escritor e musicólogo reconhecido, desde os anos de 1920, como importante “africanista”. A análise de imagens da participação de intelectuais negros no Cinquentenário da Abolição (1938), organizado por Mário de Andrade, então Chefe do Departamento de Cultura do Município de São Paulo também integraram os estudos sobre o tema.

Reflexão crítica
Se, no presente, denuncia-se em altos brados uma deliberada exclusão da participação de negras e negros no movimento protagonizado por uma elite branca, endinheirada e paulista (há controvérsias), num sentido diverso e igualmente crítico, os participantes da oficina foram convidados, melhor dizendo, provocados a indagar, levando-se em conta os respectivos contextos de produção: quais as imagens negras encontram-se presentes em Tarsila do Amaral e Mário de Andrade? De onde provêm? Do contato direto ou indireto?

Foi a partir desses questionamentos que os alunos, ao final desta oficina, produziram textos breves de gêneros variados, como crônicas, cartas, artigos de opinião ou notícias, em primeira pessoa, inspirados nos modelos dos textos abordados nas aulas, com o objetivo de estabelecer pontes com a atualidade.

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