Edição 34 - Julho/2023 | Entrevista
Corre o rio da poesia
A poesia é política? Esta foi uma das principais entre as atentas reflexões provocadas pelo professor, pesquisador e escritor Fernando Morato na oficina Poesia e Democracia – os caminhos da linguagem.
Na República ideal de Platão, poetas não têm lugar, porque se afastam da realidade, manipulam e mobilizam sentimentos, retirando o indivíduo de sua racionalidade, o que não seria positivo no contexto das interações humanas, na expressão do coletivo que é a política. Por outro lado, para Aristóteles, a exposição e viabilização dos sentimentos individuais de forma artística, poética, pode ser benéfica para a convivência e harmonia social, pois no coletivo nem todas as formas de manifestação pessoal são admissíveis.
Para além da expressão do indivíduo, o professor Morato chamou a atenção para o aspecto da comunicabilidade do texto poético. Afinal, a palavra, que é intencionalmente lapidar na poesia, pode ter uma dimensão democrática ou não. Ismália, do simbolista Alphonsus de Guimaraens ressoou no repertório de Emicida, que atualizou aspectos do poema que dialogam com a atualidade mais do que o trato sobre o cotidiano conferido pelo modernista Mario de Andrade em Paulicéia Desvairada.
Como Fernando Morato bem pontuou, “a legibilidade está diretamente vinculada aos elementos que são compartilháveis entre autor e leitor. Neste ponto, muita da poesia que se pretende “legível” porque estaria “próxima da realidade” (e por isso seria democrática), envelhece com uma rapidez impressionante. E, contraintuitivamente, muito da poesia dita “erudita” torna-se mais democraticamente acessível (melhor seria dizer “dialogal”) porque as referências eruditas são sempre aprendíveis. A aposta na erudição, antes de ser um elitismo que limita é uma aposta na possibilidade da educação, e pode ser muito democrática. Trata-se de inverter certas expectativas e usos (fazendo a poesia “falar outra vez”)”.
Nesse sentido, os participantes puderam compreender que pensar a poesia a partir de um ponto de vista político é partir do universo de referências e atualizá-lo, um universo que pode ser cultivado, apreendido e, assim, a concepção de linguagem pode ser vista como um tipo de concepção de cidadania.
O professor abraça o “dialogismo” de Mikhail Bakhtin: “A ideia dele é de que a linguagem só se constitui através do diálogo. Todo enunciado existe em resposta a um outro, e demanda algum tipo de resposta. Nesse sentido, qualquer um pode entrar nesse enorme jogo de “leva e traz,” enquanto faz acréscimos, contestações, aclaramentos e outras contribuições à colcha de retalhos que vai se formando nessa dança de perguntas e respostas. A democracia, a participação, então, faz parte da própria natureza do fenômeno linguístico. Sempre há uma abertura para conversa e participação”.
Entre tantas elucidações, os participantes foram convidados a analisar e produzir textos que se ativessem a esse espaço do diálogo, releitura e atualização da linguagem.
Fernando Morato fechou seu ciclo das aulas com uma interessante visão da atualidade: “O cenário em que se move a literatura do século XXI é dinâmico e complexo. O suporte digital influencia também na construção intelectual dos textos, que têm muito mais possibilidades técnicas de serem visuais, móveis, dinâmicos. Muito mais do que o assunto político, a democracia nos poemas do século XXI se realiza nas mais diversas possibilidades de diálogo e de intercâmbio, por isso é, sim, possível dizer que há muita democracia na poesia do século XXI, e mais ainda no horizonte”.