Edição 41 - Fevereiro/2024 | Entrevista
Cultura caipira é feita de pessoas e encontros
Nesta
entrevista, o professor Fábio Martinelli Casemiro, historiador e doutor em Teoria
Literária, destaca qual a matéria-prima que resulta na cultura caipira - “feita
de pessoas e de encontros" - que
guarda suas especificidades, em um cenário de violência e disputas. Ele também
fala sobre os paradoxos associados ao termo “caipira”, o
orgulho e a vergonha de ser caipira no contexto do século XXI. Por fim, o
professor traça um panorama do que vale a pena visitar no universo caipira.
Confira!
LBXXI:
Qual a matéria-prima que resulta na cultura caipira?
Fábio
Martinelli Casemiro:
A cultura caipira é feita de pessoas e de encontros, como qualquer cultura.
Mas particularmente, a cultura caipira (que é uma especificidade da cultura
sertaneja em geral) se desenvolve a partir do encontro (profundamente marcado
pela violência, mas não resumido por ela) entre indígenas, brancos e negros
diante da natureza exuberante de uma região do nosso país denominada
Paulistânia (que compreende os estados de São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Mato
Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás).
LBXXI: O
termo “caipira” traz consigo valores ambivalentes. Desenvolveu-se uma separação
básica sobre o modo de pensar o mundo caipira e a compreensão dele. De um lado,
criou-se um estereótipo do homem caipira (retratado nas nossas festas juninas,
por exemplo), associado a uma cultura de atraso, ignorante, pinguço, banguela e
que usa roupas e chapéus esfiapados; de outro lado, há uma identidade caipira
regida por uma indústria cultural que dissemina e representa um mundo rural
rico, do homem “cowboy”, bem-sucedido... O que dizer sobre esse paradoxo e suas
consequências?
Fábio
Martinelli Casemiro:
A palavra “caipira” quer dizer trabalhador da terra, ou seja, o caipira é
basicamente um camponês. Como em muitas outras civilizações, tanto no Ocidente
quanto no Oriente, a classe camponesa sempre foi a base da riqueza material,
mas, paradoxalmente, sempre foi vista como sinal de atraso e de
conservadorismo; algumas civilizações souberam, ainda que de modos bastantes
distintos, valorizar sua classe camponesa: os estadunidenses souberam valorar
seu country e seu blues, os chineses tomaram sua classe camponesa como motor de
seu notável crescimento econômico...
No
Brasil, a cultura caipira sempre foi marginal porque o sertanejo (homens e
mulheres dos interiores brasileiros) tiveram que se construir historicamente à
margem das máquinas estatais que em geral desprezavam sua potência: tanto a
metrópole portuguesa, quanto a monarquia do século XIX ou a república
brasileira do XX nunca fizeram questão de olhar com o devido cuidado para o
sertanejo, para o caipira. Os homens e mulheres do campo brasileiro aprenderam
a desconfiar das elites dirigentes porque nunca tiveram um país que olhasse de
verdade para eles... Daí o paradoxo: há um orgulho caipira (porque os
camponeses se fizeram pela própria luta), mas há uma vergonha caipira (porque
seu lugar político-cultural nunca foi formalmente reconhecido).
LBXXI: Nesse contexto, na sua opinião, a cultura de massa, os avanços tecnológicos, a internet e a globalização econômica são componentes capazes de destruir a alma caipira?
Fábio
Martinelli Casemiro:
Para deixar as coisas mais complexas do que já são, temos hoje, a cultura
caipira apropriada pela cultura de massa. Não acho que a indústria cultural
(financiada pela monocultura predatória no Brasil) impeça ou destrua a alma do
caipira, mas indubitavelmente, ela coopta essa alma. Cultura caipira pressupõe
ancestralidade e enraizamento que podemos encontrar nas pessoas que moram,
inclusive, nas grandes cidades... O que a indústria cultural monocultora
(principalmente das produtoras e gravadoras, dos pseudoastros do mercado
“sertanojo”) estão realizando hoje é uma apropriação indevida das culturas
caipiras (que historicamente são populares) a fim de prospectar emburrecimento
e lucro (econômico e político) a partir das riquezas culturais que pertencem ao
povo brasileiro.
Mas a
cultura caipira é mais forte e resistente, ela vive na oralidade, nos costumes,
na linguagem e nas manifestações de religiosidade do povo brasileiro. Ela já
sobreviveu a muitas outras colonizações bem mais poderosas do que a decadente indústria
fonográfica brasileira.
LBXXI: Na
sua visão, o que é ser caipira no século XXI?
Fábio
Martinelli Casemiro:
Ser caipira no século XXI é reconhecer o poder dessa ancestralidade
sertaneja que nos atravessa e que nos organiza enquanto sentimento de
brasilidade. É saber fundir tradição e modernidade, é a habilidade de converter
simplicidade e irreverência em método de compreensão do mundo, é cultivar
encontros pela fraternidade poética da prosa e é se reconhecer, mesmo quando
estamos plantados no asfalto, que somos seres de natureza.
LBXXI: O que vale a pena visitar na cultura caipira? Poderia destacar movimentos, autores, artistas, produções literárias etc. que se movem em direção à recuperação da tradição caipira?
Fábio
Martinelli Casemiro:
Muitos artistas são e foram por demais importantes e seria impossível aqui
uma lista completa. Mas para não fugir do desafio, divido a resposta em duas
partes: os artistas de sempre e os atuais.
Os de sempre: Cornélio Pires, Inezita Barroso, Tião Carreiro e Pardinho, Tonico
e Tinoco, Rolando Boldrin, Valdomiro Silveira, Afonso Arinos, Guimarães Rosa.
Os
atuais: Almir Sater, Renato Teixeira, Onça Combo (banda), Ivan Vilela (viola),
Manoel de Barros (poesia), Causos ao pé do fogo (canal do YouTube).
LBXXI: O
caipira nos habita prosaica e poeticamente. Sobre as expressões da cultura
literária caipira, como o gênero “causo”, poderia nos falar um pouco sobre o
significado da sua frase “a graça do texto literário é o seu atravessamento”?
Fábio
Martinelli Casemiro:
Bom... muitas graças podem ser encontradas em um texto literário...rs. Mas
gosto de pensar que o que mais nos agrada no texto literário é o modo com o
qual ele reverbera aquilo que sentimos, ao mesmo tempo que nos inocula novas
experiências. É uma via de mão dupla e chega um certo ponto que a gente pega o
delírio das palavras (como diria Manoel de Barros) e daí a gente não sabe mais
se somos nós que inventamos as histórias ou se são as histórias que nos
inventam... É esse o tipo de atravessamento múltiplo que ocorre quando estamos
imersos na contação de histórias da cultura caipira, quando estamos ébrios de
encontros... Atravessamento é expressão que empresto da ciência do
inconsciente, da psicanálise: entender as questões que nos atravessam é
entender como nosso consciente e nosso inconsciente não é só nosso... ele é
atravessado por outras vidas e por outras histórias. O texto literário da/na
cultura caipira está sempre grávido de atravessamentos. O sertão do mundo se
cria do lado de fora e também se procria do lado de dentro da gente. Como diria
Guimarães Rosa (citando/parafraseando ao mesmo tempo), a vida quer da gente é
coragem, a vida é travessia.
LBXXI: É
possível dizer que todos nós estamos imersos e estamos envolvidos na cultura
caipira? Como encontrar o caipira dentro de nós?
Fábio
Martinelli Casemiro:
Se caipira é o modo de encontrar-se diante do mundo como quem se reconhece
em solidariedade com os seus e com a natureza, então o caipira é antes de tudo
um princípio, um fim e um meio. Acho que a gente pode encontrar o caipira
dentro da gente (nossa ancestralidade), mas não deve se envergonhar de criá-lo,
de inventá-lo (enraizando-se) ... A cultura caipira é um modo de travessia da
vida, pela força da poesia em prosa, do causo que se cria junto... Cria quem
conta, aumenta quem escuta e conta de novo e de novo. Mais do que encontrar o
caipira, é preciso criá-lo dentro da gente.
LBXXI:
Gostaria de acrescentar algo?
Fábio
Martinelli Casemiro: Não. Já contei demais. Cabe a quem escutou, contar do seu jeito daqui em
diante. Travessia.
Abraços