Edição 35 - Agosto/2023 | Entrevista
Julio Vale: o ensino literário e a democracia
Nesta entrevista, Julio Vale fala sobre as práticas que
envolvem a literatura na escola costumam ser bastante “monológicas”, como
lembra Cecília Bajour. Nesta tradição, a figura do professor desempenha um
papel verticalizado na exploração do texto literário, ao passo que os estudantes,
por sua vez, desempenham função eminentemente passiva no trato com obras,
autores e colegas-leitores. Haverá caminhos para mudar o rumo dessa prosa
(aliás, pouco dialógica)? Confira!
LBXXI: Na sua opinião, como a
literatura brasileira do século XXI, na sala de aula, pode contribuir para o
exercício da democracia?
Julio Vale: Na oficina,
propus um recorte que tomava a qualificação do debate sobre o texto literário,
em sala de aula, como um pressuposto do exercício democrático. E caracterizei a
situação da literatura, na escola, como contraditória, porque as práticas
tendem a enfraquecer tanto a presença do leitor, substituído por uma figura que
responde a comandos do professor ou do livro didático, quanto do texto, que
muitas vezes nem sequer é lido diretamente, sufocado por discursos de natureza
crítica diversa. Nesse contexto, fica difícil saber, exatamente, quem fala
sobre o quê. Ou seja: a ideia é conceber um espaço no qual as ideias possam
circular livre e produtivamente, o que me parece cada vez mais urgente,
inclusive, para a saúde das democracias. Isto vale para o texto literário de
ontem e de hoje, é certo. Mas o de hoje institui um diálogo entre leitor e
texto que aproxima, em boa medida, os contextos de produção e de recepção. E
isso torna, ao menos potencialmente, a conversa com e sobre o texto muito viva,
porque animada por referências culturais, a depender da obra em questão, mais
compartilhadas.
LBXXI: Nesse sentido, o que
você acha que tem funcionado e não tem funcionado na dinâmica atual?
Julio Vale: Apesar de
considerar que o leitor ainda é presença menos atuante do que deveria ser em
sala de aula, creio que hoje a preocupação em assegurar este espaço é maior do
que já foi. Vejo propostas como a da sala de leitura, no município de São
Paulo, com muita simpatia. É um projeto longevo, bem concebido, com foco na
formação do leitor. Acho, também, que do ponto de vista da constituição dos
acervos, estamos em condição melhor do que estávamos há uma ou duas décadas,
com a consolidação e reconfiguração de programas como o PNBE, hoje PNLD
Literário, que contam com uma curadoria cuidadosa, ainda que sempre passível de
aperfeiçoamentos. Mas, muitas vezes, esse acervo não encontra eco em práticas
de leitura em sala de aula, seja porque o espaço disponível para acomodar os
livros é inadequado ou inacessível, seja porque o corpo docente desconhece
estes acervos, seja porque a cultura do livro didático tende a tomar, muito
contraditoriamente, estas obras como menos importantes, porque não
“informativas” ou não imediatamente aplicadas a demandas de currículo, tópicos
programáticos etc.
LBXXI: Que conselhos você daria
aos professores para que isso se efetive? E para os alunos?
Julio Vale: Tenho
perfeita consciência de que as condições de trabalho do professorado, em geral,
são muito difíceis. Aulas demais, dinheiro de menos, expectativas de
cumprimento estrito de numerosos tópicos programáticos em tempo irrisório etc.
Tudo isso deve ser posto na balança para que o discurso não caia no vazio. Mas,
ao mesmo tempo, vejo alguns espaços de respiração possíveis. Por exemplo: a
BNCC do Ensino Médio prevê explicitamente, em pelo menos três passagens, o
trabalho com a escrita literária na escola, no ritmo e tempo devidos etc. Isto
deveria ser o bastante para referendar um trabalho nestes termos em sala de
aula. E, paradoxalmente, fazê-lo seria bastante transgressor. Mas se a situação
de transgressão consiste em fazer cumprir o documento oficial, alguma coisa
está fora do lugar, não é mesmo? Quer dizer: neste e em outros pontos, os
professores estão em pleno direito de adotar estratégias mais instigantes, para
si mesmos e para os alunos, quando o assunto é literatura. Mas nada disso
acontece se o professor não estabelece, ele mesmo com a literatura, um espaço
de conversa, reflexão, entretenimento – se ele não se institui como um leitor
de poesia, contos, romances. É a partir desse vínculo que, meio por contágio,
os alunos aprendem que os textos fazem sentido para além das provas e exames,
porque jogam luz sobre aspectos da vida. Propor um espaço em que as diferentes
leituras circulem, sejam as do professor, sejam as do aluno, em blogs, redes
sociais ou murais físicos, já é algo muito importante, porque indica que o
texto literário está ali, presente, a partir de diferentes sujeitos, como coisa
cotidiana, não alienígena ou meramente funcional.