Edição 36 - Setembro/2023 | Entrevista

Literatura feminina na pauta da democracia

Arquivo pessoal

Nesta entrevista, Anselma Garcia de Sales fala sobre a importância da democratização e difusão da Literatura Árabe para a superação de visões pré-estabelecidas que tendem a criar visões estereotipadas acerca da cultura e dos povos árabes. Para ela, a mesma relevância é válida para outras Literaturas de grupos desvalorizados, cuja contribuição à humanidade necessita ser sublimada em seus aspectos diversos. A professora também comenta sobre a atualidade do tema no contexto brasileiro e o papel da literatura na consolidação e expansão da democracia. Confira!

LBXXI: Como nasceu o seu interesse em pesquisas sobre temas que tratam da resistência e da afirmação da identidade na literatura árabe?

Anselma Garcia de Sales: Sou formada em Letras, Linguística e Pedagogia. Durante a graduação em Linguística, na UNICAMP, tive a oportunidade de estudar mais detidamente a Literatura Árabe Africana em um curso sobre o autor egípcio Nagib Mahfuz, oferecido pelo IFCH-UNICAMP. O ministrante do curso, prof. dr. Paulo Daniel Farah, sugeriu que eu aprofundasse o estudo da temática em uma disciplina que seria oferecida na USP, contato a partir do qual gerou meu ingresso no mestrado e, posteriormente, no doutorado no Programa de Estudos Árabes, da FFLCH-USP, sob orientação do mesmo professor. Durante a orientação, questões como identidade, nação, discurso literário e gênero surgiram como temas muito necessários a serem discutidos dentro dessa literatura, desse modo, tanto o trabalho de mestrado, “A construção da identidade palestina: análise discursiva do poema 'Carteira de identidade', de Mahmud Darwich e outros textos palestinos” (2010), quanto o de doutorado , “A Construção do Nacionalismo Egípcio no Discurso Literário: Análise do Romance Trilogia do Cairo, de Nagib Mahfuz”, se propuseram a essa análise.

LBXXI: Os contextos históricos e políticos dentro dos quais foram produzidos os livros Haifa Fragments, da palestina Khulud Khamis (1975) e Country of Origin, da egípcio-americana Dalia Azem (1977), foram analisados em profundidade durante a oficina. Quais os elementos que unem as duas obras e por que a escolha dessas obras?  

Anselma Garcia de Sales: Escolhi estudar essas obras pela atualidade na abordagem de determinados temas que, justamente, as unem. A questão de gênero, por exemplo, é apresentada nos dois romances sob um enfoque muito contundente, em que a situação social da mulher aparece presente em meio a outros atravessamentos - como a classe, por exemplo - que denunciam o tensionamento das relações sociais marcadas pela desigualdade entre homens e mulheres. A temática política, por sua vez, interfere no destino tanto das personagens quanto dos países em questão, assim Egito e Palestina são apresentados como nações, cada uma a seu modo, em um permanente estado de dissociação apreendida pelo tempo e pelo espaço.

LBXXI: Como a força da literatura contemporânea feminina no mundo árabe é expressa pelas autoras para a construção de novos valores, em uma agenda que não se limite à igualdade de gêneros, mas aos direitos às diferenças na igualdade?

Anselma Garcia de Sales: As experiências femininas expressas pelos romances apontam para o deslocamento da existência da mulher não exclusiva à rotina do espaço privado. Nesse sentido, a despeito das limitações da persistência da desigualdade de gênero, as obras apresentam as personagens principais como mulheres que presam pela autonomia, questionamento e enfrentamento do status quo; posicionamentos esses que, ainda contraditórios, expressam o direito a uma subjetividade ativa no contexto de construção de novas identidades atravessadas pelas questões do gênero e da nação.

LBXXI: Qual a importância de trazer os temas abordados nas obras escolhidas para as atuais discussões sobre gênero, identidade e nação no contexto brasileiro?

Anselma Garcia de Sales: A importância da temática das obras para o contexto brasileiro aponta para atualidade das reflexões locais acerca da emergência de novos atores na cena da literatura. Esses atores demandam, ao trazer à tona suas experiências, uma renovação da tradição literária a partir da inclusão de suas contribuições na formação identitária do Brasil. Assim, no que se refere ao gênero, por exemplo, o conhecimento das obras das autoras árabes pelos brasileiros em muito contribui à apreensão da emergência de autorias negras, indígenas e de outros grupos minoritarizados como extremamente relevantes à construção de uma história que não seja mais única.

LBXXI: Qual é o avanço oferecido pelo conceito bakhtiniano de 'cronotopos literários' nas análises dos personagens a partir dos trechos que foram selecionados das obras para discussão?

Anselma Garcia de Sales: A utilização do cronotopos como dispositivo analítico de obras literárias, para além de propiciar uma reflexão mais detida acerca da constituição espaço-temporal no discurso, permite a delimitação de desdobramentos temáticos relevantes à compreensão das condições de produção dos romances bem como do resultado dessas condições materializado no conteúdo da obra.

LBXXI: Sobre o feminismo no século XXI: muitas características do passado reincidem no presente e algumas práticas violentas ainda marcam a diferença de gênero no Brasil e no mundo, apesar do avanço e da abertura para a diversidade sexual, de gênero e novos arranjos familiares. Que papel a literatura desempenha neste cenário e como ela pode contribuir com um novo passo no processo de consolidação, fortalecimento e expansão da democracia?

A literatura é, efetivamente, uma ferramenta para propiciar a difusão de novos comportamentos e arranjos sociais que estão em curso na contemporaneidade. Nesse sentido, a abordagem literária progressista de aspectos ligados à raça, gênero, classe dentre outras variáveis são imprescindíveis à construção de mecanismos de superação de visões e ações discriminatórias que tendem a manter intactas as desigualdades historicamente arraigadas no Brasil e no mundo. Assim, faz-se necessário que espaços de divulgação democrática da literatura sejam ampliados, a fim de que haja o fortalecimento e a consolidação de pautas democráticas urgentes.

LBXXI: Nesse sentido, na perspectiva da democracia e do equilíbrio social, você acredita que os espaços avançaram?

Anselma Garcia de Sales: Observa-se nas últimas décadas que as demandas de movimentos sociais organizados - que pleiteiam a inclusão cidadã de grupos e pautas historicamente desvalorizadas - estão alcançando de forma contundente a institucionalidade política, de modo que, se constata a aplicação efetiva de políticas públicas reivindicadas por grupos até então excluídos. No entanto, a despeito dos avanços, o conservadorismo tenta impor alguns "golpes" às conquistas já efetivadas, ações essas presentes nos episódios recorrentes de comportamentos discriminatórios e tentativas de contenção do avanço dos direitos sociais.

 

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