Edição 02 - Novembro/2020 | Entrevista
Memórias e referências de escritores negros podem contribuir na criação de textos
Realizada dentro da programação da Biblioteca de São Paulo, a Oficina Online Escrever Memórias em Contos, Diários, Cartas e Poesia, com Maurina Lima Silva, visou apresentar (além de refletir sobre) questões relacionadas com a escrita de si, sugeridas pela leitura de textos de poetas, romancistas e ensaístas representativos da literatura e do pensamento negro no Brasil. A produção de Luiz Gama, Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo constaram entre as referências dos encontros, encerrados no final de setembro. Apostando na escrita criativa pessoal ou ficcional, os participantes produziram breves textos, em primeira pessoa, nos quais seja possível observar suas vozes, perspectivas pessoais e singulares. Maurina compartilhou algumas de suas referências dicas. Confira, a seguir:
Como foi seu primeiro encontro com a literatura de Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo?
Meu contato primeiro com o texto de Conceição Evaristo ocorreu ainda na faculdade. “Ponciá Vicêncio” foi o primeiro livro que li dessa autora. Desse livro, lembro-me muito mais de uma sensação de nó na garganta do que propriamente do texto. Não sei explicar exatamente essa sensação que “Ponciá Vicêncio” deixou em mim, mas talvez a explicação esteja ligada a uma dor que é ao mesmo tempo particular e coletiva, pois se estabelece numa e a partir de uma memória coletiva, uma dor que permanece e insiste, que está presente também em nossos familiares e antepassados. Conceição Evaristo soube e sabe abordá-la e transformá-la em texto. Com Carolina Maria de Jesus, a experiência foi um pouco diferente. Lembro-me que, logo nas primeiras páginas, fiquei impressionada com a força dessa mulher que insistiu em resistir através da escrita. Em termos materiais, à Carolina faltava quase tudo, desde as coisas mais básicas. No entanto, de algum modo a escrita fornecia-lhe grande poder. Mesmo antes de terminar a leitura já comecei a indicar “Quarto de despejo” para várias pessoas, pois acredito que seja fundamental, especialmente em nossos tempos em que a desigualdade ainda perpetua com tanta força, principalmente entre o povo negro.
Se tivesse que escolher um só livro para que os alunos da oficina começassem a refletir sobre o tema da atividade, qual seria e por quê?
Indicaria “Becos da memória”, de Conceição Evaristo. Acredito que esse livro consegue tocar, com sensibilidade impressionante, em todas as dimensões temáticas que pretendo abordar na oficina, em especial no tema da memória e da escrita de autores negros. Embora o livro tenha a marca da autora, ele guarda uma experiência coletiva. Nesse sentido, evoco as palavras de Conceição Evaristo: “na base, no fundamento da narrativa de “Becos” está uma vivência, que foi minha e dos meus. “Becos da memória” é um livro que consegue traduzir, em palavras, uma vivência e uma memória que por muito tempo foram silenciadas.
Quais são as “armadilhas” que devemos evitar para construir textos sobre memórias sem que pareçam piegas? Ou esse é um risco que devemos todos correr ou talvez nem considerarmos “armadilha”?
O ato de lembrar está carregado de armadilhas. Uma delas é achar que a lembrança guarda exatamente uma experiência que tivemos em algum momento do passado. Ora, devemos saber que a memória sempre se atualiza, logo, as nossas lembranças estão condicionadas pelo presente. Isso quer dizer que um fato vivido agora ganha novos sentidos na memória daqui a alguns anos. Assim, o fato lembrado está carregado de novos sentidos, sentimentos e experiências em relação ao instante em que ele foi vivido. Mas em termos de construção de um texto sobre memória, essa armadilha não é necessariamente um prejuízo. Afinal, se toda memória se atualiza no presente, a nossa escrita também parte de questões do presente. Então, toda memória que mobilizados responde, de alguma forma, a essas questões. Resta saber como representar nossas memórias na escrita. Há, nisso, a necessidade de não dissociar a proposta estética de um compromisso ético. Se a construção do texto tem o objetivo de driblar a pieguice, a dimensão estética deve ser trabalhada com muito cuidado. E como se trata de um texto sobre memória, a dimensão ética é fundamental para que as lembranças não sejam confundidas com coisas que elas não são ou jamais foram – a deliberada invencionice, por exemplo.
Em termos de teoria, quais são os títulos que você indicaria para quem procura saber mais sobre a relação entre a memória e a literatura?
No Brasil, existe uma quantidade considerável de títulos que refletem sobre a memória. A historiadora Jacy Alves de Seixas, da Universidade Federal de Uberlândia, tem feito um trabalho interessante acerca da memória a partir de textos literários – de Marcel Proust a Svetlana Aleksiévitch. De Seixas, sugiro dois artigos, o primeiro publicado na revista Projeto História (2002, v. 24), da PUC-SP, intitulado “Os tempos da memória: (des)continuidade e projeção. Uma reflexão (in)atual para a história?”; e o segundo artigo, publicado na revista Gragoatá (2018, v.23), da UFF, com o título “’Vozes de Tchernóbil’ – o tempo suspenso, o horror e a linguagem da memória e do esquecimento”. Devo dizer que há algum tempo tenho me dedicado a estudar as representações de analfabetos na literatura. E houve um período de minha formação em que entrevistei pessoas analfabetas para entender mais sobre esse universo. Então, tratar da memória, foi incontornável. Nesse sentido, foi fundamental a leitura de “Memória e sociedade: lembranças de velhos” (Companhia das Letras, 1979), de Ecléa Bosi, que pode fornecer modos de pensar a memória também na literatura. Indico, ainda, uma coletânea de textos que tratam dos mais diversos aspectos, cujo título é “Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível” (Editora Unicamp, 2002), organizada por Stella Bresciani e Márcia Naxara. Para não me estender muito, finalizo com uma indicação que toca diretamente a relação entre a memória e a literatura. Trata-se do livro “Literatura e memória” (Galo Branco, 2006), de Heidrun Krieger Olinto e Karl Erik Schollhammer, ambos professores da PUC-Rio.