Edição 23 - Agosto/2022 | Entrevista
O guarda-roupa modernista
Poucos talvez tenham se dado conta de que a estética modernista avançou para muito além das letras, das telas de figuras enigmáticas e dos acordes dissonantes. Contaminou também o estilo de vida, os modos e chegou ao guarda-roupa dos principais artífices da Semana de Arte Moderna de 1922, com destaque para o casal Oswald de Andrade e Tarsila Amaral. Sobre a temática da vestimenta modernista como forma de expressão e produção de sentido, a pesquisadora, editora e professora Carolina Casarin conduziu a série de quatro encontros da oficina on-line da Biblioteca Parque Villa-Lobos, O Guarda-roupa Modernista, entre os dias 7 e 28 de junho.
A primeira provocação de Carolina recai sobre o vestir, a relação com o corpo, ou as práticas sociais em torno do vestuário, às quais damos o nome de moda, mas que pode ser traduzida como a mediação entre o corpo e o mundo. Não necessariamente o “vestir” com artefatos têxteis, como somos levados a pensar no primeiro momento. A pesquisadora propõe investigar o vestir simbólico, estético, ritualístico e exemplifica com imagens de indígenas paramentados apenas de plumas, adereços da natureza ou uma simples camada de tinta de urucum sobre a pele.
Um rápido percurso histórico leva à adoção do conceito de moda como uma prática de distinção social, a partir do século XVI, e logo estamos na origem das indumentárias que deram origem ao terno, à gravata, ao espartilho. E seguimos pelos modismos, passando por bengalas, vestidos, chapéus, diferentes estilos de colarinho, até chegar ao começo do século XX, num contexto de urbanidade, onde já sopram os ventos da industrialização. Estão formados o contexto e o caldo cultural de onde emergem os modernistas brasileiros, influenciados pela arte europeia, mas em busca de uma identidade genuinamente nacional.
Passeando por fotografias de época, registros em museus no Brasil e na França, e itens garimpados no acervo familiar, como cartas e notas fiscais de compras nas celebradas maisons parisienses, Carolina remonta o ato de vestir do casal "Tarsiwald" dentro de um contexto revolucionário, de quebra de padrões e encontro de uma estética brasileira. Os achados, que serviram como objeto da sua pesquisa de doutorado e deram origem ao livro O guarda-roupa modernista, o casal Tarsila e Oswald e a moda, foram compartilhados ao longo dos encontros. Entre eles, a imagem clássica dos expoentes do movimento antropofágico no almoço em homenagem ao mecenas Paulo Prado, em 1924, na escadaria do Clube Terminus. Modos de vestir conservadores e modernos se sobrepõem na foto, relevando relações de poder e atravessamentos políticos, sociais e econômicos da moda no centro das proposições modernistas.
O acesso ao guarda-roupa de Tarsila do Amaral se dá pelos registros das maisons de alta costura, do dépôt de modèle, um repositório oficial em Paris, que confere autenticidade às peças e seus autores, e pelas cartas trocadas com Oswald, fazendo referências aos estilistas Paul Poiret e Jean Patou. A transgressão modernista não está especialmente nos vestidos e mantôs usados por Tarsila, mas na forma de vestir, afinal, como pontua Gilda de Mello e Souza, “uma roupa só está pronta quando um corpo a veste”. E Tarsila não só vestiu como transgrediu.
Na sua primeira exposição individual na Galerie Percier, em Paris, em 1926, por exemplo, a pintora brasileira surge a bordo do vestido ecossais, de Poiret, de um modo totalmente diferente do que consta nos registros do dépôt de modèle, adotando uma cintura mais baixa, um estilo mais solto, ou como frisa Carolina, “uma roupa fora do lugar”. De certo modo esse uso é impregnado da estética modernista, com o xadrez estilo escocês de Poiret, fazendo contraponto com o xadrez usado nas roupas caipiras brasileiras. A referência é feita pelo próprio Oswald Andrade no poema Atelier, sintetizado no famoso verso “caipirinha vestida por Poiret”, em alusão à sua musa, Tarsila.
Mas o maior exemplo da estética “Pau-Brasil”, na moda assumida e de certo modo forjada nos ares modernistas, é o vestido que Tarsila usou no casamento com o Oswald Andrade. Um fragmento dele, o corpete, sobreviveu ao tempo e está no acervo da Pinacoteca de São Paulo, juntamente com alguns retalhos de tafetá, que acredita-se serem partes da saia. Curioso, porém, é que os tais recortes são semelhantes ao tecido do traje de casamento de Inês, mãe de Oswald, segundo fotografias da época. O que alinhava toda essa história é que provavelmente a pedido do casal Tarsiwald, Paul Poiret tenha concordado em fazer um autêntico vestido antropofágico, literalmente costurando as estéticas da maison francesa com um certo barroco brasileiro, num patchwork estético repleto de significados.