Edição 32 - Maio/2023 | Entrevista
O texto para ser visto
O que o filme traz do que o livro conta não é, necessariamente, sua reprodução linear e integral. Na oficina Adaptação cinematográfica no Brasil no século XXI, conduzida pelo roteirista de cinema e TV, escritor e professor João Knijnik, os participantes tiveram a oportunidade de transitar entre os universos da criação literária e da produção cinematográfica, para compreender o que são as entrelinhas do processo de criação de um roteiro a partir da literatura.
Sob o aspecto conceitual da transposição entre as duas linguagens, as questões técnicas envolvidas no processo de adaptação e as tendências e linhas de atuação da atualidade, os quatro encontros virtuais aconteceram no fluxo da reprodução e estudo de trechos dos filmes Cidade de Deus, de Fernando Meirelles e Katia Lund, Lavoura arcaica, de Luiz Fernando Carvalho, e Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios, de Beto Brant e Renato Ciasca, adaptados a partir das obras homônimas de Paulo Lins, Raduan Nassar e Marçal Aquino, respectivamente. Diversos filmes, imagens, autores, cineastas e críticos foram trazidos para contextualizar e complementar a discussão.
A análise detida de Cidade de Deus apontou que a linguagem cinematográfica e os recursos da imagem possibilitam ao roteirista dar voz ao que lhe revelam as entrelinhas de uma obra; ele está livre para deslocar os elementos do tempo da narrativa e até mesmo dar vida, voz e peso a imagens, pessoas, objetos e acontecimentos que nem sempre estão sob os holofotes do livro. A cena inicial do filme, com o personagem Buscapé, ainda não apresentado nesta parte do texto, não é tão relevante no livro quanto no filme. Há também o galo, que ganha personalidade quando a câmera o segue em sua correria para fugir das pessoas que o contemplam, com bocas cheias de dentes.
A oficina prosseguiu, mostrando que, em certos casos, o livro inspira e impulsiona o roteiro a contar a história em seu tempo, espaço e totalidade, mas no olhar da câmera ou sob a intenção do próprio processo criativo, como ocorre em Lavoura Arcaica, cuja criação parte da pesquisa da origem do texto, da motivação do escritor e de um retiro artístico em busca da experimentação real do elenco e da direção. Um movimento de improvisação a que o diretor também se submete no momento de filmar, em que tudo até o último corte é fruto do desejo de viver a experiência real contada no livro.
Tanto em Lavoura Arcaica como em Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios, predomina o cinema de poesia, como explica João Knijnik. As imagens não têm o fluxo da narração, mas vão se soldando ou se deslocando em cortes abruptos para se inserir no plano da consciência e do pensamento, um recurso essencial na adaptação das obras literárias para o cinema no século XXI, que se caracteriza pela mescla de narração e linguagem poética.
No último encontro, foi possível verificar que até mesmo em documentários como Ilha das Flores e O mercado de notícias, de Jorge Furtado, é nítida a presença de recursos poéticos em texto essencialmente narrativo. Do mesmo diretor, Quem é Primavera das Neves é um documentário que investiga a vida da tradutora de Alice no País das Maravilhas, contendo não apenas a poesia que ela escreveu, como também a de sua própria personalidade e do mistério das histórias que a cercam e permanecem desconhecidas. Em Gregório de Matos, de Ana Carolina Teixeira da Silva, o escritor Waly Salomão figura como ator para declamar as poesias que, por ele interpretadas, favorecem uma sensível experiência da narrativa. Por fim, Polaco Loco Paca, curta-metragem de autoria de João Knijnik sobre o poeta Paulo Leminski em Porto Alegre fechou a sequência.
Durante a oficina foram propostas atividades práticas aos participantes, entre eles a elaboração de um roteiro curto a partir de uma história de “Cidade de Deus”, por meio do qual puderam exercitar sua criatividade e compreender de perto os desafios dessa instigante captação das linhas pelo olhar da câmera.