Edição 24 - Setembro/2022 | Entrevista
O transcendente na produção literária do modernismo brasileiro
Em um momento de grandes transformações vivenciadas pela sociedade brasileira no início do século XX, o futuro da nação era questionado pelo movimento modernista neste processo de mudanças. No campo intelectual, a busca era por uma identidade nacional e A Semana de Arte Moderna de 1922 foi um momento marcante de um movimento cultural das primeiras décadas do século. Parte de alguns de seus poetas e escritores produziram em uma perspectiva religiosa e em valores da fé, especialmente cristã e católica.
A série de quatro encontros da Oficina Modernidade e as Formas do Rito aconteceu durante o mês de julho na Biblioteca de São Paulo e foi conduzida pelo tradutor, poeta e professor da Unesp, Pablo Simpson. A proposta era proporcionar um mergulho na releitura de poemas modernistas de autores que foram protagonistas de uma época, como Cecília Meireles, Vinicius de Moraes e Henriqueta Lisboa, localizando-os neste cenário de intensos debates em torno da literatura, das artes, o qual incorporava a ideia de reinvenção da História Brasileira.
Para investigar e dialogar com os referenciais teóricos que fundamentaram as ideias desses escritores, a Oficina Modernidade e as Formas do Rito percorreu um amplo espectro, que foi desde Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Cecília Meireles, a poetas contemporâneos como Armindo Trevisan, Roberval Pereyr, Marco Lucchesi e Vinícius de Moraes. Ao final dos encontros, os alunos produziram breves resenhas a partir dos textos e poemas propostos para estudo.
Naquele período, circularam revistas fundadas pelos escritores integrantes da chamada corrente espiritualista, que almejavam compreender a modernidade e indagar sobre o destino do homem, sem romper completamente com o passado. Formado em torno de Tasso da Silveira (1895-1968), no Rio de Janeiro, o grupo espiritualista fundou a Revista Festa (1927-1928 e 1934-1935).
O periódico configurou-se como o espaço privilegiado de divulgação das ideias desta corrente. Compuseram ainda o projeto: Adelino Magalhães, Barreto Filho, Brasílio Itiberê, Henrique Abílio, Lacerda Pinto, Abgar Renault, Wellington Brandão, Cardilho Filho e Murilo Araújo. Colaboraram com frequência Cecília Meireles e Alceu de Amoroso Lima (Tristão de Ataíde), dentre outros. Em contraste com as correntes vanguardistas da época, os escritores da vertente espiritualista deixaram o seu legado pelas reflexões e poesia imbuídas de elementos espirituais ancorados nos valores do catolicismo.
Confira alguns trechos da entrevista concedida por Pablo Simpson ao Projeto Literatura Brasileira no XXI:
A temática da fé cristã está presente nas obras de parte de alguns escritores, poetas e artistas da Semana de Arte Moderna de 1922 que foram protagonistas deste importante movimento cultural. Poderia comentar quais são as principais convergências desta religiosidade com muitas das ideias modernistas?
PABLO SIMPSON: Esta é uma questão central, mas que, ao mesmo tempo, é um lugar difícil da leitura que proponho. Há, de fato, muitos poemas de caráter religioso em Manuel Bandeira, por exemplo, ou outros tantos em Mário de Andrade, sem falar dos poetas que publicaram na revista Festa ou daqueles que se converteram ao catolicismo. Mas é complexo atribuir uma espécie de articulação ou convergência com ideias modernistas de forma geral.
Visto de perto, e sobretudo diante da correspondência de escritores que vem sendo publicada, tenho a impressão de que o modernismo é mais tenso e menos coeso nos seus propósitos. Alguns críticos como Alceu Amoroso Lima, apesar disso, fizeram esse percurso, e eu diria, com o auxílio deles, que há aspectos de uma certa construção da nacionalidade – e eu destaco a palavra "construção" – que parecem trazer em seu bojo dimensões de crença que passam por lugares da religiosidade cristã, como um desejo de comunidade, concebida como unidade, com um viés progressista e humanitário.
Não está muito distante do que o crítico Paul Bénichou atribuiu a parte da poesia romântica. Do ponto de vista poético, uma certa linguagem, encontrada sobretudo em poetas como Henriqueta Lisboa ou Cecília Meireles, nos coloca imediatamente num lugar, instituído desde o romantismo, porém aprofundado com o simbolismo, que faz da poesia um caminho para o transcendente.
Quais são os legados desta produção literária e a importância de se estudar o modernismo sob a ótica dos ritos e da religiosidade atualmente?
PABLO SIMPSON: Não saberia dizer algo em termos de legado, ainda que poetas como Murilo Mendes e Jorge de Lima, por exemplo, permaneçam centrais aos estudos sobre o modernismo brasileiro e sejam leituras importantes para muitos poetas que vieram depois, como Hilda Hilst, no caso de Jorge de Lima, ou Roberval Pereyr, que partilha de um imaginário que reconheço em Murilo.
Uma certa imagem da humildade, com valor moral inclusive, presente em Manuel Bandeira e em sua crítica, ajuda também a entender algumas dimensões da poesia brasileira e do eu-lírico ao longo do século XX.
Para mim, num momento como o nosso, em que o debate religioso ocupa o centro do debate político, como foi em parte dos anos 30, numa oposição muitas vezes esquemática e falsa entre cristianismo e comunismo, me parece interessante olhar para essa produção modernista, vendo o quanto há nela, em alguns poetas, de uma religiosidade que não conseguiríamos chamar propriamente de cristã, com o risco de projetar fé e dogma sobre o eu-lírico, mas que não deixa de ritualizar o lugar do poético e da arte. Talvez até pudéssemos pensar no quanto uma dessacralização da arte ao longo do século XX, em caminho oposto, não estará na origem da reinstitucionalização do sagrado em suas formas contemporâneas.
Quais são suas percepções, em linhas gerais, sobre a produção dos participantes a partir dos diálogos gerados durante as aulas: aproveitamento dos alunos, sua evolução e interesses despertados a partir do tema do curso?
PABLO SIMPSON: O princípio que norteou as oficinas foi menos o debate crítico, que faço aqui de forma um tanto improvisada, do que a leitura de poemas nos quais havia temas religiosos, como o Sacrifício, de Vinícius de Moraes, além de poemas difíceis, como Religião de Mário de Andrade.
A ideia foi sempre partir desse universo menor do poema, desdobrá-lo, entendê-lo, buscando diálogos com outros poetas, vendo temas e imagens recorrentes, atentos também ao som, ao ritmo, às repetições. A produção dos participantes da oficina foi no sentido de que cada um tivesse um tempo da escrita, que é outro, diante de um poema que eles mesmos escolhessem: o pensar-escrevendo ou o ler-escrevendo, que era trazer um pouco da experiência da leitura conjunta para um texto autoral.
O resultado, em função do prazo curto que eles tiveram para a elaboração do texto -- muitos escolheram o poema a ser a analisado só ao final das oficinas, quando chegamos a textos mais contemporâneos -- foi excelente e demonstra o interesse que esse espaço da leitura poética em sua relação com a religião despertou.
Sobre Pablo Simpson
Poeta, tradutor e professor do Departamento de Letras Modernas do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (IBILCE) da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp, foi bolsista de pós doutorado da Fondation Maison des Sciences de l’Homme (FMSH-Paris) e da FAPESP (2006 e 2008). Foi, igualmente, Leitor de Língua e Civilização Brasileira na Université de Yaoundé I nos Camarões entre 2010-2012. É autor de O Rumor dos cortejos: poesia cristã francesa do século XX (Unifesp, 2012). Traduziu livros de Georges Bernanos como Senhor Ouine. Em 2021, publicou o livro de poemas O Tio da caminhonete (Editacuja).
Esta atividade integra o projeto Literatura Brasileira no XXI, em parceria com a Unifesp.