Edição 42 - Março/2024 | Entrevista

Por que sertões no plural?

Susana Solo (foto: Tazio Zambi); Joel Vieira (foto: Gabriel Teixeira)

Susana Souto é professora associada da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), onde atua na graduação e na pós-graduação. Joel Vieira da Silva Filho é indígena Katokinn. Graduado em Letras/Língua Portuguesa - UFAL/Campus do Sertão, é mestre e doutorando em Estudos Literários pela mesma instituição. Eles defendem a ideia de um sertão plural. Susana analisa a multiplicidade do sertão presente em obras muito diversas, escritas em diferentes momentos da nossa história. “Quando lemos os textos mais consagrados com cuidadosa atenção, percebemos que esse território é complexo e metamórfico.". Hoje, segundo Joel, “os autores/as indígenas nordestinos (as), enquanto escritores/as contemporâneos/as, rompem com o imaginário que foi perpetuado com grande insistência no senso comum”. Em última análise, os professores identificam que a multiplicidade está inscrita em nossa memória e a literatura que a aborda ativa essa memória.

Confira a entrevista!

LBXXI: Na literatura, o sertão ainda é o cenário de inúmeras tentativas de interpretar a identidade brasileira. Por que “sertões” no plural?

Susana: Porque temos múltiplos sertões no Brasil, quando se entende “sertão” não apenas como uma região situada no semiárido nordestino, mas sim como oposto ao litoral, situado geograficamente no interior dos estados brasileiros. Em especial, na literatura, o lugar do qual eu (Susana) falo, essa multiplicidade está presente em obras muito diversas, escritas em diferentes momentos da nossa história. Na obra de Guimarães Rosa, temos um sertão que vai se tornando cada vez mais existencial, ainda que a visão de homem que orienta a composição da personagem seja marcada sempre pela sua conexão com o meio, numa relação que não é de modo algum determinista, mas na qual ambos se transformam mutuamente. Mesmo o sertão nordestino, quase sempre descrito em momentos de seca, em especial em programas de TV do Sudeste, recebe diversas figurações em textos literários em prosa e em verso, seja no teatro, os autos de Ariano Suassuna, que reelaboram personagens da literatura de cordel, como Chicó e João Grilo, seja em Morte e vida severina, o auto de Natal pernambucano de João Cabral de Melo Neto, seja no romance “Vidas secas”, de Graciliano Ramos, que é também uma sofisticada reflexão acerca da nossa relação com a língua e a linguagem, ou em “O Quinze”, de Rachel de Queirós, seja na obra monumental de Euclides da Cunha, “Os sertões”, ou na poesia de autoria indígena, seja em inúmeras canções de Luiz Gonzaga, de Siba, de Mestre Ambrósio. Essa multiplicidade também é destacada em vários textos teóricos sobre esse universo.

LBXXI: Poderiam traçar um panorama sobre como sertão povoou a literatura nacional ao longo da história?

Susana: O sertão aparece na “Carta de Caminha”, aparece na poesia de Gregório, é citado pelos árcades no século 18, figura em um dos livros de José de Alencar, O sertanejo, dá título a uma obra que é considerada o marco inaugural do século 20 literário, Os sertões, e parece ser uma das grandes estrelas do romance nordestino de trinta. Além disso, está presente também em muitas canções, filmes, peças de teatro, literatura de cordel, cancioneiro popular. Hoje temos a inclusão de autores e autoras indígenas no cânone, com ingresso de Ailton Krenak na ABL, como marca dessa consagração, que em inúmeras obras reelaboram imagens do sertão, seja no ensaio, na prosa narrativa ou na poesia (lírica e narrativa). Fazer um panorama exigiria muito tempo e espaço, por isso, tentamos, ao longo da oficina, ler e discutir textos de autoria indígena em diálogo com essa vasta memória que configuramos acerca do sertão, seja numa dimensão pessoal, seja literária.

LBXII: Especificamente, autores como Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e Euclides da Cunha e suas respectivas obras - Grande sertão: veredas, Vidas secas e Os sertões -, buscam fornecer com a representação do sertão um retrato do Brasil, tematizando a polaridade entre a cultura da cidade e a cultura do sertão. Poderiam comentar a contribuição dessas obras para a formação do imaginário brasileiro sobre o sertão? Considerando suas perspectivas particulares, de qual sertão esses autores falam? O que há de comum e quais os elementos que diferenciam suas obras?

Susana: Essa pergunta é muito vasta. Exigiria uma tese de doutorado, para ser respondida (risos). Gostaria apenas de destacar que a complexidade dessas obras fala sobre a vastidão e complexidade do próprio sertão, assim como das tentativas de pensar a identidade cultural brasileira. Tanto Graciliano quanto Guimarães Rosa, que escrevem assumida e programaticamente textos ficcionais, recusam a noção de polarização entre espaço urbano e espaço rural, na medida em que abordar questões, como a violência, a desigualdade, a dimensão social da língua, a injustiça, a origem do mal, entre muitas outras, que podem ser observadas em qualquer lugar não apenas do Brasil, mas do mundo.

LBXXI: Há um senso comum de que o sertão é um território não contemporâneo, um recuo ao passado, inóspito, associado à pobreza e à escassez. Vocês acreditam que autores contemporâneos têm rompido com esta noção de sertão?

Susana: Quando lemos os textos mais consagrados com cuidadosa atenção, percebemos que esse território é complexo e metamórfico. Mesmo o que se chama de “atrasado” pode ser indício de outros modos de inventar o cotidiano, não necessariamente de “atraso”. A experiência de Canudos, por exemplo, que foi abordada por Euclides da Cunha, em “Os sertões”, é bastante discutida até hoje. Fruto da miséria e da desigualdade, relacionadas intrinsecamente ao latifúndio, à monocultura e ao trabalho de pessoas escravizadas), em grande medida, é também uma experiência de criação de uma comunidade baseada na divisão de bens e na ausência de uma hierarquia que resultava em obediência cega ou privilégios para o seu líder, Antônio Conselheiro, uma personagem muito controversa. A eliminação violentíssima desse movimento nos faz questionar a noção de modernidade ligada à república recém-criada. Várias expedições do exército brasileiro foram derrotadas por aqueles insurgentes miseráveis sem poder bélico moderno ou formação militar convencional para o conflito. Eles, os insurgentes de Canudos, tinham um outro conhecimento, da terra, do clima, da topografia, por exemplo, que foi, em diversos momentos da luta, mais efetivo para a vitória do que o conhecimento formal dos militares.

A literatura de autoria indígena tem mobilizado cosmologias que são, hoje, muito mais modernas, no sentido de atuais, do que as que orientam a organização das grandes cidades. No que concerne à compreensão da ecologia, sem dúvida, essas cosmologias, que estão nos textos literários também, falam de um mundo em que podemos viver com mais qualidade de vida, ainda que privados de alguns itens de consumo que parecem necessários, mas não são. Não podemos viver sem ar de qualidade, sem água, sem comida. Em textos de Ailton Krenak, recém-eleito para a ABL, o primeiro indígena, como Futuro ancestral e Ideias para adiar o fim do mundo, vemos um convite a uma reconexão com a natureza, já que o ser humano é pensado como parte dela, em uma relação simétrica com rios, florestas, animais.... Graça Garúna, escritora, pesquisadora e professora indígena, traz um pássaro inscrito em seu nome, Graúna, e, em sua obra, há também uma celebração de outros modos de conceber a relação entre ser humano e natureza, muito mais próxima de teorias recentes da ecologia do que muitas políticas públicas neoliberais, que se pretendem modernas e inevitáveis.

Joel: Bom, eu, Joel, respondo esta questão embasado nas discussões que venho traçando em pesquisas a partir das autorias indígenas contemporâneas. Os autores e as autoras indígenas nordestinos/as, enquanto escritores/as contemporâneos/as, rompem com o imaginário que foi perpetuado com grande insistência no senso comum. Principalmente os/as autores/as advindos de regiões sertanejas do Nordeste estão propondo em suas escritas novas formas de se apresentar esse espaço que também é território indígena. A fauna e flora são tematizadas com insistência, considerando as cosmologias indígenas e as relações que os povos indígenas mantêm com a Natureza, entendendo que nós, também, mantemos constantes diálogos com essa ancestral e somos também natureza. Autoras indígenas como Graça Graúna, Auritha Tabajara, Denízia Fulkaxó, enquanto escritoras indígenas sertanejas, apresentam em seus textos características outras desse sertão nordestino indígena que é diverso e ancestral. Seja pelo pássaro Assum Preto, tão tematizado na poesia de Graça Graúna; seja no sertão indígena em que o cordel de Auritha se constrói; seja às margens do rio Opará (rio São Francisco), no qual os contos de Denízia Fulkaxó se erguem, o sertão (os sertões) adquire(m) novas formas de representação pelo viés da escrita contemporânea, da escrita contemporânea indígena. 

LBXXI: Há algo mais que gostariam de destacar?

Susana: O Brasil era um país majoritariamente rural até a segunda metade do século 20. Esse quadro começa a mudar nas últimas décadas do milênio passado. Há uma presença muito forte do sertão nas pessoas que habitam esses centros urbanos, mas que levam pra lá modos de fazer, morar, se divertir, cozinhar, se relacionar, muito ligados ao espaço rural, muitas vezes do sertão. Essa multiplicidade está inscrita também em nossos modos de habitar as cidades. Essa inscrita em nossa memória e a literatura que a aborda ativa essa memória.

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