Edição 44 - Maio/2024 | Entrevista
Quantas identidades cabem no Brasil?
Nesta
entrevista, a professora e
pesquisadora Lilian do Rocio Borba, destaca como a literatura contemporânea, de um modo geral, tem refletido o
confronto entre um legado
imaginário inicial (colonial) com as questões sociais que permeiam os
acontecimentos da sociedade moderna. “Sobre a literatura contemporânea e o
enfrentamento do legado colonial e escravocrata me parece que tem feito bem seu
embate”, afirma. A
especialista, que tem se dedicado aos
estudos da escrita de mulheres afrodescendentes no Brasil, também
contextualiza as novas formas literárias, e
outras expressões artísticas que falam sobre personagens e histórias que
sofreram apagamentos no passado, esmiuçando os diversos movimentos estéticos que visam trazer para “o centro” histórias e vozes silenciadas, como o hip hop, o slam
e o afrofuturismo, marcando as
principais referências sobre o que se diz sobre construção identitária de um
país com de dimensões tão continentais como o Brasil. Por fim, Lilian responde
sobre um desafio comum a todos: o que é necessário para que um texto aconteça?
Confira!
LBXXI: Quantas identidades cabem no
Brasil? Como a literatura constrói nossa (s) identidades?
Lilian Borba: Um
país com a dimensão territorial do Brasil e com as dinâmicas de sua formação
multiétnica, multilinguística desde antes de os portugueses aportarem em nosso
litoral, impulsiona a manifestação de múltiplos, incontáveis e complexos
processos de construção identitária.
É importante ressaltar que Stuart Hall[1],
uma das grandes referências nos estudos sobre identidades culturais, ensina que
a questão da “identidade” se relaciona com a concepção de sujeito. O foco das
discussões propostas por Hall é o sujeito moderno e o pós-moderno, “o sujeito
descentrado”, ou seja, uma concepção de sujeito que se opõe ao sujeito do
Iluminismo visto como tendo uma identidade fixa e estável. Hall mapeia mudanças
conceituais que ao longo do século XX problematizam a noção de sujeito “resultando
nas identidades abertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas, do sujeito
pós-moderno” (Hall, 2006, p. 44). O autor traz 5 momentos dessa
problematização, vou citar dois que nos interessam das discussões propostas.
Um dos marcos conceituais dos ''descentramentos"
no pensamento ocidental do século XX é Freud e a descoberta do inconsciente que
encerra com a ideia do conceito do “sujeito cognoscente e racional” provido de
uma identidade fixa e unificada - o "penso, logo existo", do sujeito
de Descartes. A partir das teorizações propostas por Freud, entendemos que nossas
identidades, nossa sexualidade e a estrutura de nossos desejos são formadas com
base em processos psíquicos e simbólicos do inconsciente. Essa problematização
aponta para um tipo de descentramento do indivíduo cuja identidade é realmente
algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo
inato, existente na consciência no momento do nascimento. Outro aspecto
importante, formado a partir do viés psicanalítico é que a identidade permanece
sempre incompleta, está sempre "em processo", sempre "sendo
formada". Então, em vez de falar de identidade singular, como uma coisa
acabada, Hall sugere que deveríamos falar de identificação, e vê-la como um
processo em andamento. (Hall, 2006, p. 39)
Outro marco conceitual indicado por
Hall (2006) e que se relaciona, de certo modo, com o que abordamos acima, se relaciona
com o trabalho do linguista Ferdinand de Saussure e sua proposição sobre a
língua como um sistema social e não individual. Hall explica que “Falar uma língua
não significa apenas expressar nossos pensamentos mais interiores e originais;
significa também ativar a imensa gama de significados que já estão embutidos em
nossa língua e em nossos sistemas culturais” (Hall, 2006, p. 40) E então vamos
pensar em como a literatura, ou melhor, como textos literários podem atuar na
construção de identidades ou de processos de identificação. A linguagem tem um
papel central no jogo das negociações de como são os brasileiros. Por exemplo, qual variedade de língua portuguesa é empregada nos romances lidos na escola? Uma discussão que volta e meia vem à tona é se “Quarto de despejo, diário de
uma favelada” de Carolina Maria de Jesus, deveria passar por revisões textuais para que seja publicado de acordo com as regras ortográficas e para que obedeça às normas gramaticais consideradas cultas. Estou me referindo à língua de uma maneira
estrita, mas os romances e demais gêneros literários também veiculam imagens de
territórios diversos do país. A obra “Sobrevivendo no inferno”, dos Racionais
MC’s, por exemplo, aborda a vida dos moradores das periferias da cidade de São
Paulo contemporânea.
Trago uma (longa) citação da escritora
e intelectual Conceição Evaristo[2]
que exprime de forma muito clara essa relação entre literatura e construção de
identidades nacionais do ponto de vista da autora:
Nossa escrevivência traz a
experiência, a vivência de nossa condição de pessoa brasileira de origem
africana, uma nacionalidade hifenizada, na qual me coloco e me pronuncio para
afirmar a minha origem de povos africanos e celebrar a minha ancestralidade e
me conectar tanto com os povos africanos, como com a diáspora africana. Uma
condição particularizada que me conduz a uma experiência de nacionalidade diferenciada.
Assim como é diferenciada a experiência de ser brasileiro vivida, de uma forma
diferenciada, por exemplo, da experiência de nacionalidade de sujeitos
indígenas, ciganos, brancos etc. Mas, ao mesmo tempo, tenho tido a percepção que,
mesmo partindo de uma experiência tão específica, a de uma afro-brasilidade,
consigo compor um discurso literário que abarca um sentido de universalidade
humana. Percebo, ainda, que experiências específicas convocam as mais
diferenciadas pessoas. (Evaristo, 2020, pp- 30-1)
Considero que é possível perceber a partir desses exemplos que a literatura seja por meio da linguagem empregada, seja por meio dos territórios narrados ou das temáticas pode atuar na construção da identidade cultural e também nacional.
LBXXI: Na literatura e em outras expressões artísticas contemporâneas há novas
formas estéticas, literárias, de falar sobre personagens e histórias que
sofreram apagamentos no passado. Poderia contextualizar um pouco este cenário
para nós?
Lilian Borba:
Sim, existem movimentos estéticos que visam trazer
para “o centro” histórias e vozes silenciadas. O movimento hip hop é um
exemplo interessante de uma nova estética crítica. Esse movimento social juvenil é enraizado nos segmentos populacionais de
baixo poder aquisitivo, majoritariamente negros e jovens. Historicamente, o
movimento ganhou força nos Estados Unidos a partir do final 1970 e
posteriormente se espalhou pelas grandes metrópoles do mundo. Segundo a docente
e pesquisadora Ana Lúcia Silva e Souza (2011), “O universo hip-hop é marcado
pela crítica que faz em relação às desigualdades sociais e raciais por meio da
poesia, dos gestos, falas, leituras, escritas e imagens que tomam forma pela
expressividade de quatro figuras artísticas, a saber: o mestre/a mestra de
cerimônia – MC, o/a disc-jóquei – DJ, o dançarino ou a dançarina – b.boy ou
b.girl, e o grafiteiro ou a grafiteira.” Desse movimento, no Brasil, temos
diversas referências importantes: o já referido Racionais MC’s; o Djonga, o
Emicida, o já falecido Sabotage, a Negra Li e muitos outros.
Ainda considerando a poesia falada, o poetry slam, ou slam, é também um movimento interessante que promove rodas de poesias faladas nas quais jovens “batalham” por meio de suas composições. Os poetry slams são batalhas de poesia falada que também surgiram nos Estados Unidos, na década de 1980. Segundo a slammer Roberta Estrela D’Alva,[3] as batalhas de poetry slams “se estabeleceram como uma das mais democráticas formas de poesia performática em todo o mundo. Sua popularização se deu como uma resposta à ideia elitista de que a poesia seria um gênero restrito aos círculos acadêmicos; que pertenceria exclusivamente a um ou outro determinado grupo social específico; ou mesmo que existiria somente enquanto manifestação escrita.” Há muitos coletivos de Slam pelas cidades do Brasil, então é um movimento forte e constituído por jovens das classes populares.
Outro movimento muito interessante é o
Afrofuturismo assim definido pela Academia Brasileira de Letras : “Movimento
cultural, estético e político que se manifesta no campo da literatura, do
cinema, da fotografia, da moda, da arte, da música, a partir da perspectiva
negra, e utiliza elementos da ficção científica e da fantasia para criar
narrativas de protagonismo negro, por meio da celebração de sua identidade, ancestralidade e história; em geral, obras pertencentes a este
movimento procuram retratar um futuro grandioso, caracterizado tanto pela
tecnologia avançada quanto pela superação das condições determinadas pela
opressão racial, dentro do contexto da vivência africana e diaspórica.” O filme
“Pantera Negra” (2018) é um exemplo de manifestação do movimento afrofuturista
ao agregar a estética tecnológica aos elementos da cultura africana. (https://www.academia.org.br/nossa-lingua/nova-palavra/afrofuturismo#:~:text=O%20termo%20busca%20descrever%20as,de%20escritores%20como%20Samuel%20R.)
LBXXI: Recordando algumas polêmicas sobre o
escritor Monteiro Lobato, que tem sido acusado de racista, ou o recente
episódio que reprovou o uso da obra O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório,
em sala de aula: na sua opinião, como a literatura contemporânea, de um modo
geral, tem refletido o confronto entre um legado imaginário inicial (colonial) com as questões
sociais que permeiam os acontecimentos da sociedade moderna?
Lilian Borba:
Essas polêmicas em
torno de obras que podem ou não fazerem parte do “cânone escolar” são muito
interessantes. Acho que esse é um bom lócus para pensarmos
Sobre a
literatura contemporânea e o enfrentamento do legado colonial e escravocrata me
parece que tem feito bem seu embate. A obra mencionada O Avesso da Pele é um
ótimo exemplo desse enfrentamento porque aborda a violência contra os corpos
negros, o racismo estrutural. O incômodo que a obra causou entre setores da sociedade que solicitaram a censura do livro nas a censura do livro nas escolas ainda que este
faça parte do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) evidencia que esta
literatura de enfrentamento ocupa um lugar de destaque entre os jovens
leitores. A obra foi vencedora do prêmio Jabuti de Melhor Romance Literário de
2021 e passou pelo processo de análise e seleção de obras literárias para fazer
parte do PNLD referido acima. E é interessante destacar que os livros que
passam pelo processo de análise no PNLD ficam à disposição das escolas e dos
professores que têm a liberdade para escolher as obras para seus
estudantes.
Outra obra
importante nesse campo de disputa é a campeã de vendas, Torto Arado, de Itamar
Araújo Júnior, que aborda de forma inovadora um passado escravagista e de lutas
pela terra que ainda não cessou. Essa obra recebeu o prêmio Jabuti de Romance
Literário em 2020, além de ter vencido diversos prêmios nacionais e
internacionais. Vendeu mais de 700.000 cópias, é um best seller. Essa
literatura de embate,
essa literatura que aborda as histórias dos que vivem na base da pirâmide
tem leitores e se afirma como essencial nas diversas esferas de discussão.
E
retomando um pouco do que falamos acima, as composições de rap e de slam –
dialogando sem intermediários com a juventude preta e dita “periférica” são
também uma amostra de que a literatura de resistência está nas ruas e praças
por meio desses gêneros da oralidade e da performance.
LBXXI:
Diversas universidades solicitam leituras obrigatórias para o vestibular e a
Literatura é um tema importante nas provas. Poderia comentar algo sobre os
critérios que vêm sendo utilizados para definição dessas listas e qual sua
importância no contexto educacional?
Lilian Borba: Vou comentar a partir de minha experiência como professora de cursinhos populares na cidade de Campinas/SP. Percebo que apesar das dificuldades de acesso às obras, apesar do exíguo tempo para ler visto que muitos jovens estudantes advindos das classes trabalhadoras, precisam trabalhar; os estudantes quando orientados para uma leitura literária que não se prenda apenas à obra mas que questione a obra, dialogue com a obra; os estudantes tendem a ter uma experiência leitora que transcende a preparação para o vestibular. Nesse sentido, acho positiva a existência das listas. As instituições têm critérios muito diferentes na elaboração das listas. A Unicamp, por exemplo, inovou ao inserir o “Quarto de despejo, diário de uma favelada” de Carolina Maria de Jesus e, tempos depois “Sobrevivendo no inferno”, dos Racionais MC’s. A inovação acontece pelos gêneros a que essas obras pertencem, à linguagem empregada, à temática presente. Muitos estudantes, sobretudo os de escolas públicas, se identificam com essas características dessas obras. E pelo entendimento de que a literatura é diversa, de que a literatura se manifesta de formas diferentes, os estudantes conseguem se “movimentar” entre autores de épocas e estilos diferentes, ou seja, acabam por aperfeiçoar suas habilidades leitoras. Mas as listas de outras instituições nem sempre se abrem à diversidade de gêneros, de linguagens e de temas. Importante destacar que no ano de 2023, a Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest), responsável pelo vestibular da Universidade de São Paulo (USP), considerada uma das mais importantes do país – informa que “renovou” a lista para as edições de 2026 a 2028 elencando exclusivamente autoras de expressão em língua portuguesa. É um movimento interessante e que também causa polêmica nos espaços de discussão. Eu sou a favor de listas como essa e parto do pressuposto de que a leitura literária na escola não deve se focar apenas na preparação ao vestibular e que, portanto, obras de autores do gênero masculino bem como de outras identidades de gênero podem e devem ser objeto de estudo na sala de aula. Ou seja, a lista do vestibular não deveria ser um motivo para se restringir a leitura literária na escola, mas para ampliar as possibilidades. Penso que trabalharmos com os estudantes sobre as possíveis e tantas peculiaridades da escrita de mulheres – desde que haja diversidade de mulheres representadas - vai ser interessante.
LBXXI: Sobre
ler e escrever (1): o que é importante perguntar quando se está lendo um texto?
Como desvendar seus segredos para ler melhor?
Lilian Borba:
Essa pergunta é
interessante porque ler um texto é, de muitas formas, conversar com o texto,
dialogar com o texto. Vou trazer o Paulo Freire[4]
para essa conversa: “Não podemos interpretar um texto se o lemos sem atenção,
sem curiosidade; se desistimos da leitura quando encontramos a primeira
dificuldade. Se um texto às vezes é difícil, insiste em compreendê-lo.” (Freire,
1992/2008 p. 59) Em nossas oficinas, buscamos estabelecer alguns diálogos com as
obras questionando sobre o contexto de produção: quem escreveu a obra? em que época foi escrita? o que acontecia no
país? quem são os personagens que entram na narrativa e em que papéis sociais? como é a linguagem empregada e quais seus
efeitos? Perguntas como essas e tantas outras que fazemos quase que
intuitivamente depois de certa experiência ou vivência com a leitura vão nos
auxiliando a desvendar alguns segredos dos textos. Alguns textos precisam ser
lidos mais do que uma vez para que possamos entendê-los melhor. Até porque
quanto mais vamos vivendo, mais bagagem temos para interpretar textos mais
complexos. Quero dizer que nossas vivências e nosso conhecimento de mundo
também são “ferramentas” de leitura.
LBXXI: Sobre
ler e escrever (2): Encarar uma página em branco é ao mesmo tempo um desafio e
uma oportunidade. O que é necessário para que um texto aconteça?
Lilian Borba:
Em primeiro lugar,
para que um texto aconteça, é necessário propósito. “Estou escrevendo para
quê?”, “Quem vai ler esse texto?”, mas essa discussão é assunto para outra
oficina!
[1] Hall,
Stuart A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 11ª
ed. 2006
[2]
EVARISTO, C. A Escrevivência e seus
subtextos. In: Duarte, C.L & Nune, I.R (Orgs) Escrevivência: a escrita de
nós, reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina
Comunicação e Arte. 2020
[3]
Roberta, Estrela Dalva, SLAM: voz de levante, In: https://www.periodicos.ia.unesp.br/index.php/rebento/article/view/360/0
[4] FREIRE,
Paulo. A importância do ato de ler. 48ª . Ed Cortez. 48ª ed. 1992/2008