Edição 43 - Abril/2024 | Entrevista
Que notícias a literatura amazônica nos traz?
Nesta entrevista, Yurgel
Pantoja Caldas, professor e pesquisador da Universidade Federal do Amapá
(UNIFAP), fala sobre suas conexões com o mundo amazônico - desde o
núcleo familiar até a formação como leitor e o ingresso no universo acadêmico –
uma longa trajetória que o levou ao aprofundando no conhecimento sobre a
Amazônia a partir de textos literários e críticos. O especialista discorre também
sobre o lugar onde é possível estabelecer um diálogo que atravessa duas perspectivas
paradoxais que pairam sobre a Amazônia atualmente. Se por um lado, a região ocupa a centralidade das discussões
globais contemporâneas sobre meio ambiente, sustentabilidade, crise climática,
economia, desenvolvimento, direitos humanos etc., por outro, há um desconhecimento
da maioria da população brasileira e respeito da região Norte do Brasil - ainda
vista como um território exótico, geograficamente distante e de difícil
compreensão. Ele chama a atenção para a necessidade da mudança de chave para
uma abordagem séria e criativa sobre o espaço amazônico que “reside na formação
de intelectuais indígenas, que reivindicam uma perspectiva diferenciada sobre o
espaço”.
Confira!
LBXXI: Pode nos contar um pouco sobre sua trajetória
pessoal, profissional e acadêmica e suas conexões com o mundo amazônico?
Yurgel Pantoja Caldas: Sou
nascido em Belém do Pará onde entrei para fazer o curso de Letras na turma de
1992 na UFPA. Na verdade, eu queria fazer o curso de Publicidade, que havia na
época. Como eu estagiava numa agência no início dos anos 90, imaginei fazendo
Publicidade: eu gostava de desenhar e compor algumas peças de propagando. Mas
entrei na Letras por causa da concorrência, que era menor em relação ao curso
que eu desejava. Minha ideia inicial era fazer a transferência de curso
(Vestibulinho) no segundo ano de Letras. Mas fui aos poucos me identificando
com o mundo das Letras e logo escolhi a linha de Literatura; até cheguei a
fazer uma atividade de pesquisa na Linguística, mas logo desisti. Meu lance era
mesmo a Literatura. Depois que me formei (1997), abriu uma seleção para o
mestrado interinstitucional entre a UFMG e a UFPA: fiz a seleção e passei na
última vaga (era uma turma com dez vagas). Logo depois, em 1998, teve um
concurso para professor de Literatura Portuguesa na UNIFAP. Por meio do
escritor Fernando Canto, que tinha retornado a Macapá, e que eu conheci em
Belém, fui, literalmente, com a cara e a coragem fazer as provas do concurso.
Fiquei um tempo em Macapá, hospedado na casa do Fernando, e esperando ser
chamado para assumir a vaga. Mas o tempo foi passando e resolvi voltar a Belém
até que a contratação de consumasse. No ano seguinte, fui convidado a fazer
parte da primeira turma de professores do projeto de Interiorização da UNIFAP;
claro que aceitei o convite e fui trabalhar no Oiapoque e no Laranjal do Jari,
dois municípios do Amapá que tinham polos de formação para professores do
ensino médio, que era o nosso público-alvo na Interiorização. Finalmente, fui
chamado a tomar posse do cargo de professor na UNIFAP depois de 12 meses de
realizado o concurso. Depois, terminei o mestrado, logo engatei o doutorado na
UFMG e defendi a tese em 2007. Sobre minhas conexões com o mundo amazônico,
elas são de diversas formas, desde o núcleo familiar (minha avó materna era de
Muaná, no arquipélago do Marajó, onde eu ia passar férias quando criança) até
minha formação como leitor literário quando conheci o professor José Arthur
Bogéa e o próprio Fernando Canto, ambos na UFPA. A partir daí fui me
aprofundando no conhecimento sobre a Amazônia a partir de textos literários e
críticos.
LBXXI: A Amazônia ocupa a
centralidade das discussões globais contemporâneas sobre meio ambiente,
sustentabilidade, crise climática, economia, desenvolvimento, direitos humanos
etc. Por outro lado, é possível afirmar que para a maioria da população
brasileira, a região Norte do Brasil ainda é vista como um território exótico, geograficamente
distante e de difícil compreensão. O senhor concorda? Se sim, onde se localiza
um possível diálogo que atravessa essas duas perspectivas?
Yurgel Pantoja Caldas: Há
ainda um modelo de pensamento binário sobre diversos espaços, e a Amazônia não
escapa a essa forma de abordagem. Ainda pensamos na Amazônia como os extremos
entre o Inferno Verde e o Paraíso Perdido; é comum comprarmos a ideia de que na
Amazônia tem-se a experiência do maravilhamento através do contato com a
natureza exuberante, ao mesmo tempo em que se pode sofrer uma emboscada de
grupos indígenas quando na imersão na natureza exuberante. O presidente francês
esteve na Amazônia (em Belém, que no período fausto da exploração do látex era
a Paris na América) por esses dias e seria importante saber dele e do
presidente brasileiro as perspectivas e as ações concretas para a diminuição de
desigualdades nessa região. Penso que a chave para uma abordagem séria e
criativa sobre o espaço amazônico reside na formação de intelectuais indígenas,
que reivindicam uma perspectiva diferenciada sobre o espaço – ao mesmo tempo
uma entidade relacional, que se dá pelo prisma da ancestralidade dos seus
territórios, e fonte de olhares renováveis.
LBXXI - A obra de Dalcídio Jurandir no ciclo do Extremo
Norte, saga romanesca de 10 volumes escrita entre 1939 e 1978, citada
durante a oficina, com destaque para a análise de Belém do Grão Pará,
quarto romance do ciclo do extremo-norte, rompe com uma tradição literária
sobre a Amazônia. Por que estudar este autor, qual a atualidade da sua obra?
Yurgel Pantoja Caldas: A obra de Dalcídio é incrível. Ele
consegue recuperar as experiências amazônicas de um universo narrativo que se
nutre das relações pessoais extremamente complexas, de um contexto político que
recupera a temporalidade da pós-escravidão no Marajó, mas ainda muito presente
no contexto de seus romances e na arquitetura de Belém que respira a decadência
dos barões da borracha e alarga a cidade para áreas alagadas onde um novo
universo é dado a conhecer. Podemos aprender muito lendo o grande romance de
formação do menino Alfredo, espécie de alter ego do autor e tão comum e
familiar que a complexidade narrativa de Dalcídio se esvai quando aquele
personagem aparece.
LBXXI –O que falar de uma
literatura comprometida com a cultura amazônica? Em que medida ela é
regional e/ou universal?
Yurgel Pantoja Caldas: Esse
debate é, ao mesmo tempo, atual e irrelevante. A grande dificuldade em se
rotular uma obra como regional, e isso é mesmo desafiador, é que a sociedade
muda e com ela muitos de seus critérios também sofrem alterações. Isso quer
dizer que tanto faz dizer que Dalcídio é regional ou universal, pois as duas
abordagens possuem justificativas textuais para uma defesa específica. Então
essa preocupação em saber se é ou não regional é bem fluida a depender dos
critérios e das formas de recepção do texto literário. Eu sempre lembro das
entrevistas do escritor amazonense Milton Hatoum, que, a partir do impacto de
seu primeiro romance, o que se repetiria nos dois seguintes, negava que suas
narrativas fossem regionalistas. Bem, o Hatoum é crítico e professor de Teoria
da Literatura; então a forma de ele produzir seus romances certamente passa
pelos critérios teóricos do escritor. Então se ele diz que seus romances não
são regionalistas é porque ele utiliza critérios teóricos que refutam essa
tese. Por outro lado, ninguém pode ser condenado ou condenada por tratar os
três primeiros romances de Milton Hatoum como regionalistas porque existem
critérios que justificam essa abordagem.
LBXXI: Um personagem importante para a cultura brasileira é o caboclo. Falar exclusivamente sobre o “caboclo” presente na realidade nortista é remontar a história da colonização. Quem é o caboclo amazônico? Que notícias ele nos traz?
Yurgel Pantoja Caldas: Essa é a pergunta mais
difícil até aqui; e isso se dá pelas subjetividades que o caboclo assume
historicamente. Não há um padrão para designar o caboclo porque isso escapa à
métrica meramente étnico-racial. E é justamente essa métrica da mestiçagem que
indica a impossibilidade de definição sobre o caboclo. A ideia de caboclo pode
e deve ser construída como uma forma de ser no mundo, o que por si só já se
afasta das questões de mestiçagem somente. Há uma cantora amapaense que talvez
você conheça, que é a Patrícia Bastos. A carreira da Patrícia alcança um nível
de penetração para além do espaço amazônico com o disco Eu sou Cabocla, com
letras de Joãozinho Gomes e músicas de Enrico Di Miceli, que também marca uma
virada na produção musical da artista e indica ao mesmo tempo uma espacialidade
e uma identidade amazônicas. Pois bem, é com esse disco que a Patrícia alcança
o público nacional, ganha prêmios relevantes e faz shows no exterior. Então a
expressão estética “Eu sou cabocla”, ao contrário do que pode sugerir, passou a
abrir um leque mais amplo de divulgação dando a conhecer a cultura amapaense,
seu jeito de falar e de ser no mundo. Aquilo que poderia apenas revelar a
necessidade de definição de uma identidade, o que não seria pouca coisa, acaba
mostrando outros espaços que se reconhecem naquela musicalidade.
LBXXI – Complementando: o senhor afirma que
o caboclo não é somente uma construção étnica ou racial, mas um modo de vida.
Poderia nos falar um pouco dessa multiplicidade
de sentidos da palavra caboclo no contexto da região amazônica?
Yurgel Pantoja Caldas: Creio
que a resposta anterior acaba contemplando essa pergunta, e acho que o caso da
Patrícia Bastos é exemplar dessa multiplicidade de sentidos que o ser caboclo
pode evocar.
LBXXI: Nos nossos dias, ser
chamado de “caboclo” é um elogio ou não?
Yurgel Pantoja Caldas: Isso depende de quem fala e para quem fala. Em geral, em nossa
região, no contexto urbano, chamar o outro de caboclo indica uma forma
pejorativa de tratamento. Nesse contexto, o caboclo seria aquele que não sabe
se comportar em público, que não domina a língua portuguesa, que não sabe se
vestir e não conhece a cidade; por isso depende dos outros até para comer e
fazer compras, por exemplo.
LBXXI: Do período colonial à contemporaneidade: a literatura amazônica apresenta inúmeras
fases. Quais são os principais autores e leituras que o senhor recomenda?
Yurgel Pantoja Caldas: É uma temporalidade muito extensa; por isso,
temos uma série de autores e autoras que merecem ser lidos e relidos. Já citei
aqui Milton Hatoum e você mesma citou Dalcídio Jurandir, que são expoentes dessa
literatura. Temos Inglês de Sousa, que tem uma trilogia fantástica sobre o
coronelismo no médio Amazonas; o escritor Bruno de Menezes com seus textos
poéticos e narrativos; Luís Bacellar e sua Manaus contraditória; Nenê Macagi e
seu romance inaugural sobre Roraima e tantos outros exemplos de literatura que
pode ocupar um espaço central na formação do leitor literário.
LBXXI: O que um leitor deve ter em mente e quais as
barreiras que ele deve superar para fazer leituras críticas dos textos
literários acerca da Amazônia - e que podem contribuir para a desconstrução de
uma visão estereotipada sobre a região Norte?
Yurgel Pantoja Caldas: Primeiramente,
esse leitor deve saber que não está mais no período colonial em que o espaço
teria que ser unificado para uma melhor forma de controle e domínio. Esse
leitor tem que saber que existem mais de seis milhões de habitantes nesse
espaço que é múltiplo e internacional, porque ocupa o território de outros
países além do Brasil e que temos o atravessamento de diversas línguas e
culturas de várias matrizes. Tudo isso já dá a dimensão dessa Amazônia como
objeto literário e que faz emergir múltiplas experiências.
LBXXI – Gostaria de acrescentar algo que julga
necessário?
Yurgel Pantoja Caldas: Gostaria
de agradecer ao professor Marcelo Lachat pelo convite dessa oficina, extensivo
a toda a equipe da Biblioteca Villa-Lobos pela gentileza, presteza e
disponibilidade nesse processo de realização de uma oficina em modo remoto, o
que foi estranho, já que oficinas pressupõem a materialidade de todos os
envolvidos. No final das contas, apesar das dificuldades, minha avaliação é
bastante positiva e quero dizer que aprendi bastante preparando o material e
lendo os textos que os cursistas produziram ao final das atividades.